Todo começo de maio, entramos na chamada Golden Week aqui no Japão. Geralmente uma semana de feriado, bem no meio da primavera, o que o torna ideal para viagens mais, digamos, urbanas, já que os outros dois grandes feriados do país são em agosto e dezembro. Verão e inverno respectivamente, sendo indicados para destinos mais específicos como praias ou estações de esqui. Dessa vez o destino foi Osaka. Principalmente pela Expo 2025 que acontece até outubro, mas também para ver outras coisas e perceber o quanto a cidade mudou desde a minha última visita, no fatídico ano de 2020.
O primeiro destino foi a área de Nakanoshima; uma pequena e alongada porção de terra entre os rios Dojima (norte) e Tosabori (sul), bem no coração da cidade e que recebeu um projeto emblemático de Tadao Ando: Nakanoshima Children’s Book Forest (floresta de livros para crianças). São três pavimentos em concreto armado - marca registrada de Ando - seguindo o formato curvo e alongado da ilha com escadas e “pontes” que criam acessos variados e permitem a visualização de todos os pavimentos, formando uma atmosfera imersiva, onde as crianças têm liberdade para escolher qualquer lugar para ler. No entanto, a parte importante desse projeto nem é a estética ou a funcionalidade, mas sim a ideia por trás.
O projeto “Book Forest” nasceu no final da década passada e foi inspirado na autobiografia de Andrew Carnegie (o Rei do Aço), que dedicou os anos finais da sua vida à filantropia, criando, por exemplo, a Universidade Carnegie Mellon, o Carnegie Hall e mais de 2500 bibliotecas nos Estados Unidos. Guardadas as proporções, o projeto Book Forest começou exatamente com essa unidade de Nakanoshima e é a forma que Ando encontrou para retribuir todo o apoio que sempre teve dos moradores locais, devolvendo para a sociedade algo que ele considera de extrema importância.
Ando costuma dizer que Osaka foi o local que o “nutriu como arquiteto” e tem, portanto, uma dívida eterna com a cidade. Socialmente bem articulado, ele ficou responsável pelos custos de projeto e construção da biblioteca, angariando fundos com empresários de diversos ramos. A prefeitura cedeu o terreno, os cidadãos também contribuem com doações de livros, dinheiro e trabalho voluntário, e no final temos um equipamento urbano resultado de uma cooperação entre todos os atores da sociedade e que mira no desenvolvimento daquele que é o seu principal ativo: as crianças. O modelo deu certo e hoje já está perto de uma dezena de unidades, todas projetadas e financiadas por Ando e doadas aos respectivos locais, incluindo Kumamoto, Sapporo, Bangladesh e Taichung.



Voltando para Nakanoshima, um dos elementos que está presente em alguns projetos de Ando é a escultura de uma grande maçã verde. Esse objeto iconográfico está lá para representar a juventude. Junto com o famoso poema “Youth”, de Samuel Ullman, é uma forma de Ando encorajar as pessoas a permanecerem jovens, apesar da idade e das circunstâncias da vida. E ele próprio é um belo exemplo de que a vitalidade não está presente apenas nos nossos anos dourados. Em 2009, aos 68 anos, Ando foi diagnosticado com câncer e teve que retirar a vesícula biliar, os dutos biliares e o duodeno. Apenas cinco anos depois, a mesma doença o acometeu e dessa vez ele retirou o pâncreas e o baço, totalizando cinco órgãos internos. Ele voltou a trabalhar um mês depois, e apesar de ser “obrigado” pelos médicos a diminuir sua carga horária, ele continua trabalhando até hoje, aos 83 anos, com a energia invejável de um jovem, e costuma brincar com a situação afirmando que ficou “mais leve” com cinco órgãos a menos.
“A juventude não é um momento da vida; é um estado de espírito (…) Juventude significa uma predominância temperamental de coragem sobre a timidez (…) Ninguém envelhece apenas com o passar dos anos. Nós envelhecemos abandonando nossos ideais.” (Samuel Ullman)
Dentro da Book Forest havia alguns cartazes de uma exposição que estava acontecendo na cidade, que levava o nome Youth (Juventude), e era um grande compilado multimídia da obra de Tadao Ando. O local da exposição é uma galeria nova chamada VS., localizada na renovada área de Umeda, próximo à estação central de Osaka. Acessei o código QR que havia no cartaz e vi que a exposição duraria até julho. A princípio cogitei deixar para uma outra oportunidade, até porque já tinha visto a exposição na Ando Gallery que fica no Museu de Arte de Kobe e que é bastante completa, mas olhando o site da VS. sobre a exposição, vi que o próprio Ando estaria no local para uma pequena palestra exatamente naqueles dias da minha estadia na cidade e assim, comprei os ingressos dentro desse período.
A galeria VS. também é projeto de Tadao Ando. São dois pequenos edifícios separados no nível da rua, mas unidos pelo subsolo. Um deles é totalmente envidraçado, onde fica o espaço do café; o outro, onde fica o local da exposição, é um cubo de concreto fechado, exceto por uma pequena abertura em vidro que extrapola o limite da fachada. Perto da entrada também havia uma maçã verde gigante, atraindo a atenção de turistas e transeuntes.
Olhando pelo lado de fora, dava a impressão de que a galeria era bem pequena e, portanto, de que a exposição seria bem modesta. Mas na realidade todo o conteúdo foi muito bem elaborado e o espaço era bem maior do que aparentava. Duas salas fechadas exibiam apresentações em vídeo projetadas em três paredes; uma delas mostrando alguns de seus principais projetos e também relatos de pessoas como Bono Vox, do U2 e Koji Yakusho, premiado ator de Perfect Days comentando sobre a admiração que sentem por Ando e toda sua obra; a outra era uma reprodução também em vídeo mostrando precisamente a visão das pessoas que visitam a Igreja Sobre a Água, em Hokkaido, essa também desde sempre marcada no meu Google Maps.



O resto do espaço era tomado por maquetes, fotos, desenhos e painéis, separados por região, em especial uma grande parte dedicada à Naoshima, onde Ando tem uma dezena de projetos realizados em mais de trinta anos. O local de uma maquete gigante da ilha foi também o local escolhido para que Ando falasse para um público numeroso e atento.
O ingresso era válido pelo dia todo, mas a primeira visita de Ando estava marcada para as 14:00 e depois outra para as 15:30. Como todo bom profissional, ele começou em ponto. Na verdade começou com cinco minutos de antecedência, até porque o local já estava lotado, provando o prestígio que Ando tem em Osaka. O meu (ainda) vergonhoso pouco entendimento do idioma japonês somado ao jeito carregado dele falar fizeram com que eu não assimilasse quase nada do que foi dito. Mas tudo bem, geralmente esse tipo de palestra é feita em cima de textos e entrevistas já publicados e que eu já li a exaustão, fora que não é todo dia que a gente vê um ídolo de perto.



Durante a palestra eu ficava pensando na (até então) remota possibilidade de conseguir um autógrafo dele. E corri para a loja da galeria para comprar algo “autografável”, fosse uma camiseta ou um cartão postal, só pra garantir. Lá encontrei um senhor que trabalhava no local e falava inglês. Perguntei a ele se haveria a possibilidade de conseguir um autógrafo de Ando e ele respondeu que a sessão de autógrafos começaria logo após a palestra, e (mostrando o livro/catálogo oficial da exposição) que Ando estaria colocando o nome do visitante na capa e assinando embaixo. Parecia mentira. Perguntei se haveria um horário para o término da palestra, e quando o senhor ia responder, ouvi os aplausos indicando que ela já havia encerrado.
Peguei uma cópia do livro e corri pro caixa. Paguei o valor e o senhor me indicou a fila para a sessão de autógrafos. Já estava imensa. Sem demora, Ando se acomodou em uma mesa para a próxima tarefa do dia. Imediatamente começou a autografar dezenas, talvez centenas de livros de forma que a fila andava rápido. Dois assistentes ajudavam com o manuseio dos livros. Uma outra funcionária da galeria andava pela fila com uma caneta e um bloco de papel para que as pessoas (especialmente não japoneses) escrevessem seu nome para que não houvesse nenhum erro. E lá estava eu, com o livro na mão junto com um papel escrito “Danilo”, aguardando ansiosamente a minha vez. Chegando perto, dava pra ver o nível de concentração de Ando ao autografar os livros. Um de seus assistentes precisou soletrar o “ilo”, pois minha letra piora exponencialmente com o passar dos anos. E assim, sem mais nem menos, saí da fila com uma cópia autografada para, enfim, curtir a exposição em paz.

Talvez não haja pessoa melhor para falar sobre juventude. Às 15:25, ouvimos outra salva de palmas. Era o começo da segunda palestra que estava marcada para 15:30. Eu já estava cansado por ele, mas ele seguia firme, com seriedade e compromisso, tão raros nos dias de hoje. A quantidade de crianças e adolescentes ouvindo com atenção o que um senhor de mais oitenta anos tinha a dizer deve ter enchido o coração de Ando de satisfação, afinal de contas esse sempre foi o objetivo dele desde que adotou o “símbolo maçã verde” em meados dos anos 2010: Falar para as próximas gerações e estar perto das pessoas através da arquitetura. Mas não apenas falar, também contribuir de forma efetiva como faz com o projeto Book Forest.
Ando teve uma infância e adolescência humildes, com pouco ou quase nenhum acesso a livros e em meio a um país devastado pela guerra. Antes de embarcar na arquitetura, foi boxeador. Tornou-se arquiteto sem ter frequentado a faculdade. Tinha tudo pra dar errado e deu tudo absolutamente certo. É um dos arquitetos mais premiados do mundo, detentor dos principais prêmios da área: o Pritzker (1995), o Carlsberg (1992), o Praemium Imperiali (1996) e o Royal Gold Medal (1997). Além do recente projeto Book Forest, também foi parte atuante na reconstrução do Japão em dois eventos catastróficos como os terremotos de 1995 de Kobe/Awaji (para o qual ele doou todo o valor de U$ 100.000 que ganhou com o Pritzker) e o terremoto de 2011.
Ando acredita firmemente que os livros são a melhor forma de desenvolvimento de uma criança. Eu espero que seu corpo permaneça tão jovem e forte como sua mente. E eu espero, de coração, que ele passe dos 100 anos de vida, pois até lá ainda dá tempo de inspirar muita gente. Em tempos de tantos influenciadores vazios, que sejamos realmente influenciados apenas pelos melhores.
“Mesmo que a luz não esteja brilhando onde você está, contanto que você tenha a coragem de sair, em algum lugar você encontrará alguém que entenda. A partir daí, juntos vocês podem correr freneticamente em direção à luz que veem à distância. As satisfações da vida só podem ser sentidas no processo de superação das dificuldades. Certamente a luz não se tornará visível se você continuar se atrapalhando na escuridão. Para continuar no caminho do que você acredita sem ser varrido pelas duras realidades da sociedade, você deve ter algo absolutamente inabalável em seu coração.” (Tadao Ando)
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Que bacana 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻