Em 2016, um comercial de uma marca de café enlatado que passava na TV aqui no Japão mostrava um trabalhador já no fim do dia, entrando em um pequeno caminhão, com uma toalha em volta do pescoço (hábito comum aqui durante os meses mais quentes), abrindo uma lata de café, dando um longo gole e suspirando satisfeito; pelo dia de trabalho terminado e por aquele pequeno prazer diário.
Em poucas palavras, o recente sucesso “Perfect Days”, do diretor alemão Wim Wenders, fala exatamente sobre isso: o trabalho duro, realizado diariamente com afinco misturado com pequenos intervalos de prazer de uma forma muito estruturada dentro da rotina de Hirayama, personagem principal do filme. Hirayama tem um emprego comum. Ele integra uma equipe responsável pela limpeza de banheiros públicos em Tokyo. Só que ao mesmo tempo é um emprego incomum, já que não estamos falando de quaisquer banheiros, mas sim, de banheiros projetados por arquitetos e designers de renome como parte de um projeto chamado “The Tokyo Toilet”. E a história vai acontecendo lentamente no meio dessa rotina, com eventuais voltas ao passado através de encontros inesperados e sonhos em preto e branco. A trilha sonora revelada através das fitas cassete que Hirayama escuta no carro o acompanha em momentos pontuais, muitas vezes dizendo mais do que ele próprio.

A valorização de trabalhos muitos vezes ignorados pela maioria das pessoas, o apreço pela natureza e pela passagem das estações, o ritmo pautado na rotina e a escassez de diálogos longos não são necessariamente uma novidade no cinema japonês. Podemos citar, por exemplo, o (também maravilhoso) “Sabor da Vida”, de 2015, dirigido por Naomi Kawase, que mostra a rotina de um vendedor de Dorayaki (um tipo de doce recheado com pasta de feijão Azuki) e “Okuribito” (A Partida), no qual o personagem principal, em uma tentativa frustrada de se tornar músico, se vê obrigado a voltar pra sua cidade natal e consegue um emprego como assistente funerário, preparando corpos para cremação. E isso não se resume apenas ao cinema “adulto”. Em animações como “A Viagem de Chihiro” (2001) e “O Serviço de Entregas da Kiki” (1989) - ambos de Hayao Miyazaki - as protagonistas conquistam a admiração de todos por conta do trabalho duro que realizam diariamente.
Mas não é só sobre o trabalho. Um aspecto muito “japonês” do filme é a extrema dedicação na realização de pequenas tarefas diárias, sejam elas prazerosas ou não. A rega das plantas, os minutos de leitura antes de dormir, a pequena dose de café enlatado pra começar o dia, as fotografias que tira das árvores no horário do almoço e a playlist de sucessos da década de 1960 e 1970 que ele ouve no toca-fitas do carro são feitas com a mesma seriedade e pontualidade de um trabalho. E a divisão do dia nessas pequenas tarefas é o que guia Hirayama, que mora em uma espécie de apartamento antigo de 2 andares que, embora não tão pequeno, não possui espaço para banho, forçando-o a utilizar uma das inúmeras casas de banho públicas da capital japonesa. Isso também, meticulosamente incluído na sua organizada rotina.
Cada minuto do filme convida a gente a dar uma desacelerada no ritmo pra começar a prestar mais atenção às pequenas coisas a nossa volta e a tentar encontrar pequenos momentos de alegria em coisas triviais e descomplicadas. Alguns detalhes, porém, me deixaram pensativos, como a frequente aparição da Tokyo Skytree durante todo o filme, servindo talvez de âncora que nos puxa pra uma real dimensão de Tokyo: megacidade, capitalista e cosmopolita, ainda que emoldurando a frugalidade do protagonista, mas sempre pronta pra engolir o que é velho para dar lugar ao novo, de forma que a própria existência de Hirayama dentro desse esquema é tão frágil quanto os brotos de árvore que ele colhe nos parques. Outro ponto interessante é o relógio de pulso que Hirayama sempre deixa em casa nos dias de trabalho, mas o usa nos dias de folga. Será medo de se perder no tempo livre? Ou na mente livre? No mais, o filme é um recorte no cotidiano de prováveis muitas pessoas que seguem sua vida às margens de uma sociedade segregada.
Antes de falar dos coadjuvantes de luxo - os banheiros do The Tokyo Toilet -, é válido citar algo que já foi também notado por outras pessoas, que é a semelhança entre Perfect Days e Morima-san, um documentário de 2016 produzido por Bêka & Lemoine que mostra a rotina do proprietário homônimo da icônica Moriyama House, projetada por Ryue Nishizawa em 2005. De fato, algumas semelhanças são bem gritantes, como o gosto dos protagonistas por música e leitura, a maneira simples de viver a vida e a afinada simbiose entre homem x moradia que eles demonstram. Aliás é justamente nesses momentos dentro de casa que as coisas ficam bem parecidas; desde o ritual de higiene diário, até os momentos onde estão ouvindo música e lendo algum livro deitados no chão. Sem contar as roupas que também são quase iguais. Até que ponto um inspirou o outro eu não sei, mas tanto um quanto o outro são a personificação de algo bem escasso nos dias atuais.

The Tokyo Toilet
O objetivo era criar banheiros públicos que pudessem ser usados por todos, de forma confortável, acessível e segura, mas essa ideia não nasceu pronta e nem do dia pra noite. Koji Yanai, idealizador do projeto, começou a ter os primeiros insights em 2008, quando conheceu Shingo Kunieda, primeiro tenista japonês em cadeira de rodas a chegar em um Grand Slam. Mais tarde, durante os Jogos Paralímpicos de Londres, em 2012 e do Rio de Janeiro, em 2016, sua admiração por esses atletas só aumentava. Curiosamente, a confirmação de Tokyo como sede dos Jogos de 2020, tendo o lema “Omotenashi” (hospitalidade) trouxe um certo desconforto para Yanai, que considerava Tokyo uma cidade pouco acessível, portanto, pouco convidativa. A metrópole inclusiva que ele idealizava estava longe de ser uma realidade mas, com uma maneira muito japonesa de encarar as coisas, Yanai questionou qual seria uma necessidade básica das pessoas, independente de raça, orientação sexual, classe social, ou capacidade motora e usar a resposta como base para a criação de um equipamento urbano que “marcasse todas as caixas”. E o denominador comum encontrado foi justamente o banheiro. O equipamento que resolve a necessidade básica das necessidades básicas de todo ser humano. E começou a juntar gente de peso pra tirar esse projeto do papel e criar equipamentos urbanos que fossem verdadeiramente inclusivos e acessíveis, ao mesmo tempo em que se tornam verdadeiras obras de arte na paisagem urbana de Tokyo. Essa foi a maneira que ele encontrou para, minimamente, fazer jus ao termo “omotenashi”. Hoje são 17 “super-banheiros” assinado por nomes como Toyo Ito, Kengo Kuma, Tadao Ando e Fumihiko Maki, e que são devidamente peregrinados por gente de todo o mundo.
Muitos desses banheiros são mostrados no filme, em especial o de Shigeru Ban que utiliza vidros coloridos que são transparentes quando não há ninguém dentro, mas ficam opacos assim que a porta é trancada, adicionando uma camada extra de segurança, já que, principalmente no caso das mulheres (infelizmente), é comum o temor de entrar em um banheiro público, especialmente à noite. Esse aliás foi o único banheiro que visitamos em 2021, e estava impecavelmente limpo; talvez o Hirayama-san da vida real tinha acabado seu turno por ali.

No geral, Tokyo é uma cidade extremamente limpa, considerando seu tamanho. Mas nem tudo foram flores na história desse projeto. Os primeiros banheiros começaram a ficar prontos em julho de 2020, quando deveriam ter acontecido os Jogos Olímpicos de Tokyo. Com o tempo, alguns deles começaram a sofrer danos, como pichações, por exemplo e a manutenção desses equipamentos começou a ficar complexa e custosa. Em uma conversa com Takuma Takasaki, que acabou sendo co-produtor do filme, eles perceberam que não bastava simplesmente pedir pra que as pessoas cuidassem bem desses locais, era preciso mudar a percepção delas a respeito do assunto. E a saída pra isso, mais uma vez, foi através da arte. Ali surgiu a ideia de Perfect Days. Admiradores de longa data do diretor Wim Wenders, Yanai e Takasaki também fizeram questão que Koji Yakusho, premiado ator japonês, interpretasse Hirayama. O “sim” de Wenders veio em 2021 e as filmagens foram concluídas em 2022, ainda com resquícios da pandemia. Perfect Days foi indicado ao Oscar 2024 como melhor filme estrangeiro e Koji Yakusho recebeu o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes.
Em uma cena do filme, Hiarayama está andando de bicicleta pelo bairro onde mora. Ele encontra um idoso observando um terreno recém-limpo coberto com uma lona azul. O idoso questiona Hirayama: “Você se lembra o que havia aqui?” Hirayama olha em volta com uma cara confusa, buscando em sua memória fotográfica indícios do que teria sido aquele lugar. E esse talvez seja um dos retratos mais verdadeiros de Tokyo. Uma cidade em constante metamorfose, renovando-se dia após dia. Como diria Ryue Nishizawa: “Aqui, tudo o que é velho precisa ir embora. As pessoas adoram o novo.” Partindo desse princípio, tanto Hirayama quanto Tokyo propõem uma reflexão no sentido de que todos nós busquemos a valorização intensa do momento presente, pois pode ser que nada mais exista amanhã.