Nara foi a capital do Japão entre os anos de 710 e 784 d.C e abriga ainda muito da atmosfera daquela época. Dentre os tantos templos e santuários espalhados pela cidade, talvez o mais conhecido seja o Todai-ji, um complexo com algumas construções, incluindo o Daibutsu-den, que abriga uma estátua de Buda com quase 15m de altura e é o destino principal da maioria dos turistas. E o caminho até lá é muito bonito. Um parque imenso e muito bem cuidado, uma gangue educada de cervos que inclinam a cabeça em reverência para pedir biscoitos e um lago também impecável. E como em quase todo templo/santuário, existe um ponto que marca a passagem do mundo humano para o mundo divino e esse ponto é representado por um portal. Muitas vezes um pequeno “torii” pintado de vermelho dá conta do recado, mas no caso do Todai-ji, esse portal é imenso e, arquitetonicamente falando, possui uma importância igualmente grandiosa: o Todai-ji Nandai-mon (Grande Portal do Sul).
Dezoito grandes pilares sustentam um enorme telhado duplo de quatro águas e nos vãos laterais encontram-se duas estátuas de divindades guardiãs (Ni-o), cada uma com mais de 8m de altura, sendo que no total a estrutura alcança pouco mais de 25m. Originalmente ele foi construído no século VIII, mas foi destruído durante as batalhas entre os clãs Taira e Minamoto em 1180 e a sua reconstrução (1199-1203) ficou por conta do monge budista Chogen, que o fez no estilo Daibutsu-yo, derivado de modelos arquitetônicos utilizados na dinastia Sung, da China. Apesar dessa influência chinesa no design, o uso da madeira como método construtivo já era bem desenvolvido no Japão.
Situado pra lá do leste do continente asiático, o Japão é um país que tem como características climáticas: estações bem definidas e alto índice pluviométrico. Apesar de boa parte do ano ser ensolarada (especialmente do lado do Pacífico), o dois períodos chuvosos - antes e depois do verão - costumam ser intensos e contribuem para que a vegetação cresça de forma vigorosa. Atualmente, cerca de 70% do país é coberto por florestas em montanhas, daí a valorização excessiva do espaço construído que disputa com a agricultura tanto as áreas menos íngremes, quanto as que estão mais próximas ao mar. Além disso, o país fica minuciosamente situado em uma das bordas do conhecido “Anel de Fogo do Pacífico”, local de grande atividade tectônica, sendo portanto suscetível a vulcões, terremotos e maremotos, além dos corriqueiros tufões do segundo semestre que costumam causar estragos lá pelas bandas de Okinawa e Kyushu.
Nesse cenário fica fácil concluir que, ao longo da história, a madeira tornou-se um subproduto óbvio, e o seu manuseio foi aperfeiçoado ao extremo pelos japoneses geração após geração. Essa instabilidade geológica do país acabou por amadurecer lentamente um complexo sistema de encaixes em madeira que não utiliza ferragens, aproveitando-se, portanto de todos os aspectos mecânicos desse material. Essa técnica recebe o nome geral de Kigumi, embora diferentes tipos de encaixes tenham seus respectivos nomes. Um dos inúmeros exemplos recentes que fazem uso dessas técnicas é o projeto do Pavilhão Japonês na Expo Milão, em 2015, que recebeu o nome de Kigumi Infinity, uma estrutura autoportante toda em madeira que foi projetada por Atsushi Kitagawara.
As raízes do Nandai-mon são tão profundas quanto o próprio uso da madeira, e sua essência construtivista vem inspirando arquitetos de diferentes gerações. Desde os pilares, até a série de suportes projetadas para fora em direção aos beirais do imenso telhado, todos os elementos são única e exclusivamente realizadas com o intuito de simplesmente manter a estrutura de pé, quase desprovido de ornamentos desnecessários. E tem funcionado. Arata Isozaki, quando perguntado sobre qual a estrutura que representa genuinamente a arquitetura japonesa, escolheu o Nandai-mon do Todai-ji (e não o Palácio de Katsura ou o Santuário de Ise) justamente por essa essência construtivista, derivada de conhecimento específico no manejo de um determinado material como resposta às características locais e ignorando valores culturais. No auge do movimento metabolista, seu projeto: “City in the Air: Shibuya Project” (1962) é claramente influenciado pelo Nandai-mon, no qual Isozaki utilizava os pilares como grandes estruturas das quais brotavam unidades residenciais bem acima de uma Tokyo que ele considerava sem esperança.
“Tóquio não tem esperança. Estou deixando tudo abaixo de 30 metros para outros. Se eles acham que podem desvendar a bagunça nesta cidade, deixe-os tentar. Vou pensar na arquitetura e na cidade acima de 30 metros”.
Já Kengo Kuma afirma que se reencontrou com a arquitetura justamente em uma viagem para o lado rural do Japão, mais precisamente em Yusuhara, região montanhosa na ilha de Shikoku. Lá ele projetou - entre outras tantas coisas - o Yusuhara Wooden Bridge Museum (2010), através do qual ele redescobriu as habilidades de carpinteiros locais no trabalho com a abundante madeira da região e passou a investir nesse material em seus projetos, valorizando não somente a madeira em si, mas a maneira quase artesanal com a qual ela era tratada, assim como o potencial de utilizar essa prática como elemento intermediário para a comunicação humana. O projeto também é visualmente bem parecido com a estrutura do Nandai-mon e a herança estética aqui está diretamente ligada às limitações encontradas pelos antigos carpinteiros que trabalhavam na confecção de pequenas peças para construir estruturas maiores, dadas as bem demarcadas e variadas condições climáticas do país.
“A madeira é um material vivo, portanto, à medida que a temperatura e a umidade mudam, as qualidades e dimensões da madeira mudam”.
Kuma talvez seja o principal arquiteto a fazer uso da madeira dessa forma “artesanal”, afirmando que essa técnica não só é visualmente bonita, como muito bem adaptada às características climáticas do Japão, pois utilizando pequenos pedaços de madeira entrelaçados e em balanço, forma-se um conjunto capaz de absorver o movimento de contração e expansão do material através dos vazios entre as peças. O interesse em Yusuhara intensificou-se depois do estouro da bolha econômica na década de 1980, entretanto, o interesse nesse aspecto vernacular da arquitetura vem desde os tempos em que trabalhou com Hiroshi Hara que fez uma intensa pesquisa sobre pequenos vilarejos pelo mundo para entender a dinâmica desses locais e aprender também sobre os materiais utilizados para construir. Para Kuma, esse tipo de estrutura evidencia a escala humana do edifício e traz uma sensação de conforto e segurança para os usuários e para a comunidade.
Muitos arquitetos nipônicos enxergam a madeira como o material construtivo do futuro. Embora alguns eventos relativamente recentes como a Restauração Meiji e, principalmente, o modernismo que chegou ao Japão em meados do século XX tenham trazido o concreto e o aço - que ainda hoje são materiais dominantes na construção civil - a madeira vem ganhando um novo fôlego, porém não como uma mera repetição do que era feito séculos atrás, mas sim, como uma forma de reaproximação entre as pessoas, os espaços construídos e a natureza.
Em 1964, Kenzo tange construiu o Yoyogi Gymnasium para os Jogos Olímpicos do mesmo ano e utilizou o concreto e os cabos de aço na estrutura para fazer um verdadeiro monumento simbolizando uma nova era tecnológica para o país. Em 2020, Kengo Kuma foi o responsável pelo projeto do novo Estádio Nacional de Tokyo para as “Olimpandemíadas” e utilizou a madeira na fachada e nos grandes beirais que oferecem sombra para os espectadores, reforçando uma renovada necessidade de conexão com a natureza. O estádio está localizado em uma considerável área verde da capital japonesa e inicialmente estava programado para sediar as provas de maratona dos Jogos Olímpicos, momento esse que Kuma aguardava com certa ansiedade, já que os competidores correriam através do parque e entrariam no estádio para a linha de chegada, celebrando essa triunfante reconexão. No fim, assim como quase tudo que deu errado nesses jogos, as provas de maratona foram transferidas para Sapporo e esse reconexão não aconteceu, como de fato ainda está longe der ser uma realidade.
“O amigo mais antigo que os seres humanos têm é a madeira”.
Longe de tudo isso, o Nandai-mon continua lá, 820 anos em pé. Testemunha de todas as transformações pelas quais o Japão passou desde então e recebendo pouca atenção de muita gente. Um monumento vernacular, por assim dizer, dos tempos onde as pessoas estavam realmente mais ligadas à natureza e ao entorno, e o trabalho em grandes empreitadas como a reconstrução do Todai-ji e do Nandai-mon exigiam a cooperação in loco de um grande número de pessoas fazendo uso de materiais disponíveis na região, fortalecendo os laços de uma relação cada vez mais desgastada entre homem e meio ambiente. O fato de uma estrutura de quase mil anos ainda inspirar arquitetos contemporâneos, seja pelo material empregado, seja pela técnica construtiva, diz muito sobre a maneira arbitrária com a qual temos construído nossas cidades, com o uso demasiado de materiais e “esquemas segregadores”. Talvez seja preciso olhar pro passado de forma produzir uma arquitetura que realmente promova essa simbiose.