Imagine o seguinte cenário: você nasceu em uma cidade qualquer (obviamente), passou bons anos da sua vida lá, fez amigos, foi pra escola, pra faculdade, arrumou um emprego e, já adulto, conseguiu um promoção e foi transferido para outra cidade, estado ou país. Nesse novo local você casou, teve filhos e viveu outros bons anos, até que um dia resolve voltar para a cidade onde nasceu. Chegando lá, você percebe que tudo está diferente. A padaria da esquina que você costumava comprar o pão do café da manhã não existe mais, a rua onde você brincava quando criança não é mais tão acolhedora quanto antes, as casas pequenas não existem mais, pois deram lugar a prédios onde vivem pessoas que não conhecem você.
Diante desse cenário, você acaba tomado por uma mistura de sentimentos divergentes: alegria por ter voltado, nostalgia, tristeza por perceber que aqueles momentos não serão vividos e revividos da forma que você imaginava e a súbita percepção de que tudo mudou, a vida seguiu seu fluxo e, apesar de você ter voltado para o mesmo ponto geográfico no qual você nasceu, o lugar em si não é mais o mesmo. Esse lugar pode estar degradado de alguma forma, abandonado ou até mesmo completamente modernizado e evoluído. Mas, essencialmente, esse lugar não é mais o mesmo.
Se você já experimentou essa sensação, ou alguma outra sensação na qual há essa mistura de alegria com tristeza, você provavelmente experimentou algo que os japoneses chamam de setsunai. Essa palavra não tem tradução direta pra nenhum idioma e atualmente é empregada, por exemplo, quando se fala do lado rural do Japão, onde as cidades pequenas estão cada vez mais abandonadas, inclusive com incentivos financeiros do governo pra quem estiver disposto a morar e investir nesses locais.
Na década de 1960, o Japão vivia um período de pleno crescimento econômico, apesar do trauma da Segunda Guerra ainda estar bem presente no imaginário das pessoas. Esse crescimento econômico foi potencializado em 1959, quando Tokyo foi escolhida como a sede para os Jogos Olímpicos de Verão de 1964 que, apesar do “Verão” no nome, foram realizados em outubro. Outono, portanto, no hemisfério norte. A cidade virou um grande canteiro de obras; a Metropolitan Expressway (enorme projeto rodoviário) passando por cima dos rios e canais, Shinkansen (trem-bala) ligando Tokyo a Osaka, monorail para o aeroporto de Haneda e toda uma leva de novos edifícios, estádios, ruas e avenidas.

Nesse milieu desenvolvimentista estava Kenzo Tange, figura notável (talvez a mais) na arquitetura moderna japonesa da segunda metade do século XX, mentor de toda uma nova geração de arquitetos e que, ainda hoje, é admirado por muitos deles. Logo no início de sua carreira, trabalhou com Kunio Maekawa e Junzo Sakakura, que passaram períodos no escritório de Le Corbusier em Paris e trouxeram pro Japão as “novas ideias” que estavam surgindo na europa, especialmente nos CIAM.
Tange abraçou a dialética daquele momento; era um período de grandes mudanças sociais no país, onde a tese tradicionalista era confrontada pela antítese modernista - que chegava do ocidente com força total - e coube a ele sintetizar essas contradições em direção a uma nova arquitetura. Foi a introdução da teoria na prática arquitetônica do Japão.
Depois de ensaiar esses novos caminhos em projetos como o Memorial da Paz em Hiroshima, onde uniu as proporções do Palácio de Katsura com pilotis e concreto armado, bem como o edifício da prefeitura de Kagawa, Tange teve pela frente a tarefa de projetar um novo ginásio para os Jogos Olímpicos de Tokyo. Na verdade, o plano consiste em dois ginásios: o primeiro (maior) tem capacidade para 15.000 pessoas e foi utilizado para provas de natação e saltos ornamentais; já o segundo é menor, abriga 5.000 pessoas aproximadamente e foi utilizado para competições de basquete. Ligando tudo isso, um eixo central que concentra atividades de apoio e é responsável pela integração do complexo com a cidade. Seu vizinho famoso mais próximo é o Santuário Meiji, dentro do parque Yoyogi, o que reforça ainda mais essa dualidade.



Ambos os ginásios utilizam um sistema estrutural parecido, concebido pelo próprio Tange, junto com os engenheiros Yoshikatsu Tsuboi e Mamoru Kawaguchi: uma cobertura suspensa por cabos de aço. No entanto, são fundamentalmente diferentes: no ginásio maior, dois grandes pilares de concreto sustentam os cabos principais (como numa ponte) de onde nasce a cobertura de aproximadamente 120m de diâmetro. Tange insistiu que a distância entre os cabos principais fosse maior no centro, diminuindo em direção aos apoios, criando uma certa dramaticidade quando vista da parte interna. No menor, a cobertura inteira parte de um único pilar, desenvolvendo-se quase que num círculo completo de 65m de diâmetro. O Pavilhão Phillips de Le Corbusier para a Expo '58 em Bruxelas e o Ginásio de Hockey da Universidade de Yale, de Eero Saarinen serviram de inspiração para Tange, sendo que o projeto de Saarinen era visualmente bem parecido, embora menor. O que hoje parece relativamente simples foi considerado um grande avanço tecnológico para a época, tanto que conseguiu manter-se como a maior cobertura suspensa desse tipo por anos.
O Japão, aliás, é conhecido pelo relativo sucesso na parceria entre arquitetos e engenheiros estruturais. Mutsuro Sasaki, por exemplo, projetou estruturas fantásticas como a da Mediateca de Sendai, de Toyo Ito e o Rolex Learning Center, do escritório SANAA; Mamoru Kawaguchi trabalhou com grandes nomes da arquitetura como Hiroshi Naito e Kazuyo Sejima, além de ter mantido uma parceria de seis décadas com Arata Isozaki e ter sido um dos responsáveis pela gigantesca estrutura da Expo '70 em Osaka.
Todo esse salto tecnológico também corroborava a ideia de que o Ginásio de Yoyogi era a síntese edificada entre o tradicional e o moderno então vastamente discutida. Elementos visuais presentes nos telhados das pagodas japonesas e detalhes que remetem ao Santuário de Ise feitos em concreto armado complementavam essa mistura.



Kengo Kuma, que visitou o local pela primeira vez aos 10 anos de idade, logo após o encerramento dos Jogos, ficou maravilhado. Hoje ele é diretor de um conselho promocional fundado com o objetivo de dar início ao processo de pedido para que o Ginásio de Yoyogi seja reconhecido como Patrimônio Mundial da UNESCO. O governo japonês já garantiu que ele será designado como “importante propriedade cultural”, o que pode ser considerado um ótimo começo. Entende-se que o projeto, além de ter se tornado um ícone do modernismo japonês, é símbolo de um momento histórico para o país, que foi a rápida recuperação após a Segunda Guerra Mundial e os Jogos Olímpicos de 1964 contribuíram para propagandear essa nova fase: quase pacífica e muito próspera.
Adiantando algumas décadas, chegamos nas vicissitudes que nos levaram ao fatídico ano de 2020. Ano olímpico, mas também o ano que ficou marcado sabemos bem o porquê. E lá estava Tokyo: novas estações de trem, novas linhas de metrô, novos estádios, edifícios, ruas e avenidas, ou seja, um grande canteiro de obras. E lá estava o Ginásio de Yoyogi, que perdeu suas piscinas internas e, até então, vinha sendo usado em diversas atividades esportivas e culturais, de novo sendo protagonista do evento que reúne os povos através do esporte, só que dessa vez com o mundo em quarentena. Após o atraso de um ano, os Jogos de Tokyo 2020 (+1) começaram de forma tímida, como no filme “A Vida é Bela”, com o mundo caindo aos pedaços, mas tentando manter uma atitude positiva. E assim foi até o encerramento, deixando como legado um prejuízo astronômico para o país. O novíssimo Estádio Nacional projetado por Kengo Kuma quase passou batido, já que as barreiras policiais tiravam o brilho desse que também é um projeto magnífico. A cidade estava estranhamente calma para a ocasião, mas nunca vazia. De vez em quando cruzávamos com alguma delegação de algum país distante com os atletas aproveitando aquela oportunidade assim como os turistas.
O processo de compra de ingressos para quem estava morando no Japão era teoricamente descomplicado: você entrava no site da organização, escolhia os eventos que gostaria de assistir e esperava o sorteio (sim, você tinha que ser sorteado para conseguir o direito de comprar ingressos), só que na prática esse processo levava de duas a três horas por conta da quantidade absurda de acessos. Foram abertas 3 datas de sorteio para os residentes. Tentei a primeira, sem sucesso. A segunda, idem. Na terceira eu tentei de teimosia e no apagar das luzes consegui ingressos para 4 jogos, dois deles (handball) no Ginásio de Yoyogi. Seria um momento catártico pra mim, onde as dores cederiam espaço para a alegria de poder visitar um dos meu projetos favoritos justamente durante os Jogos Olímpicos, ainda que durante uma fase de pande(mônio). Poucos dias antes do início, porém, o governo decidiu que todos os jogos realizados dentro de Tokyo seriam sem espectadores, jogando um balde de água fria no meu entusiasmo, mas acabei indo pra Tokyo mesmo assim.



Andando pela cidade, eu constantemente oscilava entre a alegria de estar presenciando aquele evento e a frustração por tudo o que estava acontecendo no mundo, numa espécie de limbo temperamental. Setsunai. O Yoyogi de Tange sempre esteve no meu imaginário; visitei algumas vezes, mas somente pelo lado de fora, ainda não tive a oportunidade de sentir o que Kengo Kuma sentiu quando visitou a parte interna. Era proteção de tela do notebook surrado que eu usava pra fazer trabalhos da faculdade e, nessa época, eu sonhava em ver de perto essa obra. Hoje eu sonho em ver mais de perto e quando eu conseguir, algo vai me fazer sentir que preciso de mais, pois começo a acreditar que o tal do setsunai é inerente à condição humana.
Foram 57 anos de distância entre uma olimpíada e outra, de forma que é perfeitamente possível que alguém tenha tido a oportunidade de estar presente em ambas. E eu fico aqui imaginando o que se passa na cabeça dessa pessoa, quando compara as duas ocasiões, chegando à rasa conclusão de que provavelmente é algo como alegria, nostalgia e tristeza.
Uau