“Flutuando sob os beirais, uma profunda escuridão.”
Na década de 1930, Junichiro Tanizaki escreveu o - ainda hoje aclamado - “In Praise of Shadows” (Em Louvor das Sombras). O livro é considerado um clássico quando o assunto é estética japonesa, especialmente na arquitetura. É também uma espécie de manifesto, já que Tanizaki estava incomodado com o avanço do país em direção à ocidentalização de sua sociedade, e utilizou a escrita como forma de eternizar detalhes construtivos, costumes, e o seu próprio olhar sobre um estilo de vida que aos poucos ia desaparecendo.
Ele começa descrevendo a batalha para construir sua própria casa de forma que soluções e artefatos modernos como telefone, ventilador/aquecedor, fios elétricos, entre outros, não afetassem a elegância do zashiki, o tradicional cômodo de tatami, desprovido de mobília e ainda hoje presente em casas contemporâneas construídas pelo infame mercado imobiliário. Tanizaki rejeita esteticamente quase todas as facilidades produzidas em massa em favor de soluções antigas que sempre funcionaram, contudo, reconhece a praticidade e a conveniência de um aquecedor elétrico em uma noite fria de inverno, bem como a viabilidade econômica desses equipamentos, quando comparados com outros, feitos sob medida.
“Um obsessivo pode arrancar os cabelos sobre onde colocar o telefone para que ele não se torne uma monstruosidade - sob as escadas, talvez, ou no canto do corredor. Ele poderia esconder cabos elétricos ao ar livre enterrando-os no jardim, por exemplo, esconder os interruptores de luz dentro dos armários (…) no final, no entanto, todas as suas neuroses simplesmente nos deixariam com a impressão irritante de artifícios excessivamente complicados.”
As condições climáticas do Japão levaram seu povo a colocar importância redobrada nos telhados das construções de forma que este passou a ser talvez o elemento mais significativo de sua arquitetura, com grandes beirais não apenas sobre a residência em si, mas sobre as “varandas” (engawa), diminuindo drasticamente a quantidade de luz natural dentro dos ambientes. Em uma passagem do livro, Tanizaki descreve os telhados japoneses como “grandes guarda-chuvas”, enquanto os telhados da arquitetura moderna ocidental não passavam de “pequenos bonés”. Na sua visão, o povo japonês foi forçado a conviver com as sombras, passando não só a admirá-las, como a moldar seus costumes para delas tirar melhor proveito. A parca luz que entra por baixo dos grandes beirais - filtrada pelos painéis shoji - ilumina os cômodos de forma suave, dando a eles uma atmosfera única, em tons neutros, remetendo, talvez aos abrigos arcaicos de antepassados distantes.
E quando a noite caía, as velas eram a principal fonte de luz, tornando os detalhes dourados de objetos laqueados mais vivos, em forte contraste com a escuridão ao redor. Alimentos como o yokan (um doce de aparência translúcida feito de feijão azuki), ou uma tijela de suimono (sopa feita com vegetais e frutos do mar) ganhavam uma camada extra de profundidade, ficando assim, mais apetitosos.

Outro ponto que chama bastante a atenção é o uso dos banheiros, que antigamente eram separados da construção principal, sendo necessário passar por chuva, sol, vento e neve para poder acessá-lo. E isso não era visto como incômodo pelo autor, mas sim como uma experiência sensorial única, na qual todos os sentidos eram ativados naquele pequeno espaço; seja pelo som da chuva caindo, pelo aroma de musgo, ou pela visão do jardim que era possível através de pequenas aberturas nas paredes de madeira. Era, sobretudo, uma experiência meditativa, e talvez fonte de inspiração para muitos poetas e escritores. Segundo ele, os banheiro modernos, revestidos com cerâmica clara e aparelhos de porcelana branca com detalhes em metal não produzem o mesmo sentimento de tranquilidade que a madeira é capaz de produzir. Para Tanizaki, de todos os aspectos da arquitetura tradicional japonesa, o banheiro é o “ápice do refinamento”.
“Agachar-se no leve brilho da luz refletida pelo painel shoji e render-se a um estado meditativo ou olhar pela janela para o cenário do jardim é uma sensação impossível de descrever.”
Ma (間)
Relendo o livro, acredito que apesar da riqueza de detalhes com os quais Tanizaki descreve o que seria (para ele) uma casa ideal, a “sombra”, nesse caso, tem muitas facetas além da escuridão inerente. Ela representa o vazio, o espaço, o intervalo, a pausa. Algo que os japoneses chamam de Ma. E esse conceito de Ma permeia muitos aspectos da conduta, da comunicação, da música, das artes, da arquitetura e do cotidiano do povo japonês.
Uma das facetas do Ma que mais me chama a atenção é quando utilizado como “ponte” que, ao mesmo tempo em que conecta coisas distintas, também as separa. Por exemplo, na arquitetura de um santuário xintoísta existe um espaço chamado himorogi, geralmente quadrado e delimitado com uma corda (shimenawa) pendurada em 4 pilares de madeira nas extremidades. Esse espaço é reservado para a “aparição” divina, representada às vezes por uma árvore no centro, ou um pequeno altar de madeira e é, simultaneamente, uma ponte para o mundo dos deuses inserida no mundo humano, mas ainda assim, com limites claros entre um e outro.
O vazio do zashiki é entendido como um lugar com infinitas possibilidades a partir da interação com seus usuários e assume o papel de palco - como no teatro Noh, ou nas peças com marionetes do teatro Bunraku - que abriga um vasto acervo de experiências efêmeras e histórias vividas. A vestimenta das mulheres do período Edo corroboravam esse status de palco que as casas tradicionais (da elite, diga-se de passagem) mantinham; apenas rostos e mãos ficavam visíveis, com maquiagem branca excessiva e os dentes enegrecidos, deixando o resto do corpo abrigado na escuridão do kimono e nas sombras cuidadosamente cultivadas sob os grandes telhados. Eram marionetes da vida real, onde o claro e o escuro - a realidade e a fantasia - andavam de mãos dadas.
O Ma como enquadramento das possibilidades infinitas continua sendo explorado na arquitetura contemporânea japonesa, especialmente a de Tadao Ando, que enxerga a riqueza de uma arquitetura, digamos, austera, como um local de refúgio para o coração, bem como a utilização dos percursos, que nos fazem focar no momento presente, em direção a uma elevação espiritual, sempre guiados por um jogo dinâmico de luz e sombra.



Traçando um paralelo entre as desilusões de Tanizaki e as minha próprias, dá pra afirmar que sinto uma onda saudosista toda vez que lembro da minha infância e adolescência. Apesar de muitas coisas serem mais complicadas naquela época (assim como as idas ao banheiro de Tanizaki), elas pareciam mais reais e genuínas. Parecíamos mais presentes no presente. E não éramos atropelados com informação vindas de todos os cantos. Nossa mente tinha mais espaço e tempo para assimilar as pequenas doses de estímulos que recebia. As tralhas eletroeletrônicas que começavam a inundar as casas japonesas no começo do século passado são as tralhas virtuais que inundam nosso mundo contemporâneo. É preciso desacelerar. É preciso abraçar as nossas sombras, cultivar os nossos vazios e, ao mesmo tempo, apreender a preenchê-los com experiências significativas. Da mesma forma que o zashiki era contemplado com uma pintura, um arranjo floral ou algum outro objeto de valor no pequeno subespaço chamado “tokonoma”, que convivia em harmonia com o restante do ambiente.
Quando olhamos para a nossa própria vida, o Ma pode ser entendido como o momento presente. Nos vemos diante do espelho todos os dias sem realmente perceber as mudanças pelas quais passamos, ao passo que ficamos surpresos ao ver o quanto mudamos quando olhamos para uma fotografia antiga de nós mesmos. E a gente se pergunta: “Quando foi que mudamos tanto?” Mudamos no percurso. No trajeto. No gap que existe entre um tempo distante e o presente, e seremos bem diferentes em um futuro distante comparado com o mesmo presente.
A vida é um eterno gap. E o presente é um palco para as inúmeras experiências e oportunidades que vamos escrevendo nessa página em branco. O problema é que a nossa capacidade de adaptação ao novo parece ser inversamente proporcional à nossa idade. No caso de Tanizaki, o “novo”, o processo de ocidentalização do Japão que ocorreu no final do século XIX o atropelou como um caminhão. O desenvolvimento que foi maturado ao longo de alguns séculos no ocidente foi implantado no Japão no intervalo de algumas décadas. De maneira parecida as novas tecnologias nos atropelam hoje com a aparente sensação de que não há tempo suficiente para qualquer adaptação adequada. E a velocidade com que essas mudanças ocorrem são o que determina o quanto ficamos estranhos e diferentes de nós mesmos.
O presente é vazio: com infinitas possibilidades, incompleto e sem limites.
“Nós já estamos perdendo o mundo das sombras, mas eu espero trazê-lo de volta, pelo menos no reino da literatura. Quero aprofundar os beirais do templo que chamamos de literatura, escurecer suas paredes, empurrar coisas superexpostas para a escuridão e remover decorações inúteis dos cômodos. Eu não peço para fazer isso com uma rua inteira. Eu me contentaria com apenas uma casa na sombra. Ninguém pode prever como vai ser, mas apenas para experimentar, vamos apagar as luzes.”
“O presente é vazio: com infinitas possibilidades, incompleto e sem limites.” Gostei disso! 🙏🏼✨