“velha lagoa . . .
um sapo salta nela
o som da água”
No século XVII, popularizou-se no Japão um tipo de poesia conhecida como Haiku, como esta acima, de Matsuo Bashō.
Tradicionalmente, são poemas pequenos, contendo 3 frases seguindo a estrutura 5-7-5, sendo que a primeira frase tem 5 “on” (espécie de sílaba), a segunda tem 7 e a terceira 5, formando um poema com 17 “on”. A natureza geralmente era o tema principal desse tipo de poesia, detalhando um momento que caracterizasse uma estação específica do ano, por exemplo. Ainda que pequeno, esse poema é suficiente pra que a gente consiga imaginar a cena, ouvir os sons, etc. Uma linguagem direta que, com apenas 3 linhas, revela alguns aspectos que estão enraizados na cultura japonesa como o conceito de “MA”, a transitoriedade e a impermanência das coisas. Ao utilizar a escrita para fazer um recorte sucinto de um momento, a noção de passado e futuro deixa de existir e o que sobra é o aqui e o agora; a atenção total àquele instante específico que foi congelado em alguns versos.
Contudo, a noção de presente pode não ser um “momento” específico, estático. Há quem diga que o presente pode ser entendido como fluxo; as coisas que estão para acontecer acontecem e viram passado em uma fração de segundo, ininterruptamente. E essa mesma noção de presente varia, do ponto de vista do observador e de acordo com o instrumento utilizado para descrevê-lo.
No poema acima, essa descrição precisa daquele momento que o poeta estava desfrutando deixa pouca margem para nós, observadores, imaginarmos um cenário diferente do que foi descrito, ainda que em meras 17 sílabas.
No caso da fotografia, tivemos na década de 1960 o surgimento de um conceito chamado “are-bure-boke” que significa algo como “áspero (granulado), borrado e fora de foco”. O conceito ficou conhecido, em grande parte, através da Provoke Magazine, uma pequena revista que mais estava pra um manifesto/crítica aos rumos que a sociedade japonesa estava tomando no pós-guerra do que pra uma publicação fotográfica. Foram apenas 3 volumes com fotos e textos, de onde saíram nomes como Daido Moriyama, Koji Taki e Eikoh Hosoe. Are-bure-boke era a antítese da fotografia nítida e precisa praticada no ocidente como um todo. Era o retrato cru do momento; do movimento, do enquadramento pobre, da exposição incorreta. Um fragmento de existência que não é pensado ou ensaiado, é apenas vivido e retratado. No entanto, a utilização de uma imagem como ferramenta para congelar um momento pode estimular a criação de histórias distintas por trás da imagem em si, dependendo de quem a está observando. Uma imagem oferece pistas mais complexas para se chegar a um veredito. Um olhar de uma pessoa em um retrato, um gesto, um lampejo de emoção, um borrão de movimento capturado com uma longa exposição , tudo isso pode ser interpretado de maneiras diferentes, por pessoas diferentes que acumularam vivências diferentes ao longo da vida.



Mas o que tudo isso tem a ver com Ando?
De forma geral, um aspecto muito importante da cultura japonesa é o vazio; a ausência, a pausa. Seja entre um “espaço” e outro, seja entre uma palavra e outra.
A arquitetura de Tadao Ando é considerada austera por alguns. Entretanto, considero que sua arquitetura assume o papel de moldura, na qual o quadro principal, a arte em si é dada através da natureza e da própria existência humana que ocorre dentro dessa moldura. Nada é imposto, exceto os limites que nos guiam dentro desse esquema onde o percurso é parte fundamental. Os caminhos que enaltecem o que pode ser sentido através da visão, do olfato, do tato e da audição.
O percurso como o que existe no Water Temple, na ilha de Awaji. Um corredor curvo entre paredes de concreto, por onde vamos nos livrando do excesso de pensamentos, seguido por uma escada que desce pelo meio de um lago de lótus para se chegar ao templo em si - ao local da oração. Um mergulho pra dentro de si mesmo. Não há nada no percurso além do céu acima, do som das árvores e pássaros e da calma visão das flores de lótus sobre o espelho d’água. O concreto duro serve apenas como limitador do volume de estímulos ao redor. Algo que nos faz focar no caminho e na experiência.



Da mesma forma, existe um caminho no programa da Azuma House (Row House in Sumiyoshi), em Osaka. Um projeto extremamente modesto, mas que busca enriquecer a experiência de morar de seus usuários pois, para Ando, “quando os fatores externos do ambiente de uma cidade exigem que a parede não tenha aberturas, o interior deve ser especialmente rico e satisfatório”. Assim como nas arquiteturas de outrora, onde o banheiro era um cômodo separado da construção principal, na Azuma House, ele só é acessível passando pelo pátio e entrando em contato com elementos da natureza como sol, chuva e vento. Ando entende que há beleza nessa inconveniência e que a cultura japonesa tem como base o convívio harmônico com a natureza, com a passagem das estações tão bem demarcadas no Japão. É essa inconveniência que traz plenitude para o momento presente, a atenção plena e contemplativa dos ensinamentos budistas, diferente das limitações do presente descrito pela poesia, ou retratado pela fotografia. A arquitetura como um palco para as emoções humanas.



Confesso que, quando eu estava na faculdade e via algum livro ou revista com os projetos de Ando, eu ficava frustradamente intrigado, perguntando pra mim mesmo o que eu estava perdendo ali. Por que aquele cara era tão premiado? O que a minha ignorância estava impedindo de enxergar sempre que olhava alguma foto de seus projetos? Muitos anos se passaram desde então, até que em 2019 eu resolvi visitar a icônica Igreja da Luz, em Osaka. E foi ali que as coisas começaram a fazer mais sentido. Lá, deu pra ver de perto o respeito de Ando pelo que se entende - de forma geral - como características intrínsecas da arquitetura japonesa: simplicidade estrutural, clareza, respeito aos materiais, ausência de adornos, harmonia com o entorno. A luz natural sempre foi algo venerado por Ando e o nome “Igreja da Luz” faz jus a isso, já que o ponto alto do projeto é justamente um cruz subtraída de uma parede de concreto, através da qual a luz natural entra de forma balanceada e traz com ela uma sensação reconfortante. E essa é talvez uma das maiores piadas (no bom sentido) arquitetônicas da história: pessoas amantes de arquitetura do mundo todo vem ao Japão pra chegar naquela igreja e olhar pro vazio, pra uma fresta na parede. E foi justamente lá que eu fiquei por horas, apenas absorvendo aquele espaço, junto com outros visitantes maravilhados, cada um a sua maneira; alguns orando, outros fotografando, outros rabiscando alguma coisa em um caderno de rascunhos. Porque a arquitetura é melhor compreendida quando vivenciada.



A habilidade de Ando em valorizar a natureza e ainda assim construir algo significativo é tanta, que existe até uma outra igreja projetada por ele que é fundamentalmente o oposto da Igreja da Luz: A Igreja sobre a Água, em Hokkaido. Se na primeira a cruz aparece como um vazio na parede, na segunda ela é meticulosamente posicionada sobre um espelho d’água, sozinha, como um monumento e, da mesma forma, as pessoas que estão dentro da capela propriamente dita são guiadas a olhar pra fora, para a cruz distante que dialoga com a chuva o vento e a neve, como se fosse parte daquela natureza e não da construção. Na Igreja da Luz há uma capela sem cruz. Na Igreja sobre a Água há uma cruz sem capela.

O ser humano não nasce pronto. Somos um acúmulo de experiências em eterna evolução. Chegamos nesse mundo incompletos e assim vamos embora. Nesse contexto, acredito que a arquitetura deve ser flexível e estimulante, nunca pronta e limitada. O elemento não construído - o vazio - é um ativo que deve ser tão valorizado quanto o construído, pois nele está a margem de erro, a possibilidade de crescimento e adaptação. Tadao Ando dizia que: “a condição de estar faltando algo que deveria estar presente estimula o espírito humano”. E acredito muito nisso. Aliás, aquele “algo mais” que eu sentia falta quando olhava as fotografias de seus projetos sempre esteve presente, mas só ficou realmente visível pra mim in loco, reforçando a habilidade do arquiteto em criar espaços verdadeiramente instigantes e estimulantes.
Amei o texto, as fotos, amei o final e a igreja... Que coisa mais linda!
Bravo Danilo...gostei muito do texto e esta semana descobri um pouco mais do trabalho do arquiteto Tadao Ando...e achei muito sensorial a sua arquitetura e de muita reflexão e descoberta...esse estudo dele de sombra e luz e a Igreja da Luz realmente é fantástica...parabéns e não pare não rsrs vá em frente!!!