Quando estou procurando algum assunto sobre o qual escrever, geralmente isso vem acompanhado de fotografias que eu mesmo tiro e as utilizo como complemento visual para o que quer que tenha sido escrito. Há um grau de satisfação maior quando coloco os créditos na legenda da imagem como “arquivo pessoal”, e de certa forma a fotografia é parte importante das coisas que “produzo” por aqui, oferecendo insights e registrando detalhes esquecidos no tempo. O lado ruim disso é que tenho algumas ideias de texto que estão temporariamente engavetadas, por conta do trabalho absurdo que vai dar para fotografar o que tenho em mente, ainda que seja perfeitamente possível encontrar imagens sobre o assunto na internet.
Durante as minhas horas livres, é comum eu andar com a câmera pendurada no pescoço fotografando coisas triviais como flores, pessoas, cenas cotidianas e, claro, arquitetura. Após anos nessas andanças fotográficas aqui pelo Japão, um elemento arquitetônico tão trivial quanto importante acabou chamado minha atenção: a janela. Não pela beleza, pelo design ou arquiteto famoso que projetou o edifício, mas sim, pela forma um tanto desleixada com que são tratadas e utilizadas.
Em bairros residenciais, onde há uma predominância de casas já com uma certa idade, é muito comum vermos janelas praticamente preenchidas com objetos, sem um motivo aparente. São vasos, potes plásticos, panelas, produtos diversos de limpeza, objetos de decoração, ursos de pelúcia, e toda sorte de bugigangas amontoadas como se nem existisse uma janela ali. Confesso nunca ter perguntado pra algum japonês sobre o assunto, até porque a resposta pode ser bem sem graça do tipo: “qual o problema?” ou “não é da sua conta”. Mas se fosse pra arriscar um palpite eu diria que a falta de espaço é um forte candidato à razão principal. Pela minha experiência morando em apartamentos japoneses, dá pra afirmar que a quantidade de armários nunca é suficiente e acredito que isso aconteça também com as casas.



Outro palpite seria uma espécie de transição cultural. Entre uma geração que vivia com menos e cultuava costumes arquitetônicos estoicos que incluem um cômodo de tatame com uma mesa baixa no centro e conjunto de futon dobrado e desdobrado na hora de dormir (bem no estilo Hirayama-san) e outra geração mais recente, consumista e acumuladora que se vê obrigada a utilizar qualquer espaço útil como local de armazenamento de tralhas, por exemplo, fixando prateleiras na parede e ignorando que no meio do caminho tem uma janela, anulando assim sua nobre função.
Ao longo da história, as janelas assumiram papéis diversos que vão desde a defesa contra inimigos até o enquadramento de alguma paisagem adjacente, sendo que sua função mais óbvia é a de fornecer ventilação e iluminação naturais para dentro do ambiente. Podemos então simplificar todos esses usos em um denominador comum que é o de criar um link entre o interno e o externo de uma forma dimerizável. Uma persiana meio aberta aqui, uma cortina semitransparente ali e vamos ventilando, iluminando e controlando o ruído do ambiente de acordo com o mood do momento.
O contrário também funciona. Uns vasos com flores bem cuidadas aqui, uma bandeira do time do coração ali e vamos dando pitadas de nossos gostos e costumes para quem quiser ver.



Recentemente as janelas ganharam uma relevância maior no mundo inteiro, quando boa parte das pessoas se viu trancada em casa por causa da pandemia. Durante esse tempo, elas eram o único portal para o lado de fora, servindo de refúgio e local de reflexão. Um grupo no Facebook chamado View From my Window (vista da minha janela) foi criado em março de 2020 por Barbara Duriau e reuniu quase 4 milhões de pessoas que até hoje compartilham suas vistas particulares através das janelas sintéticas das telas do smartphone e do computador.
No Japão não houve lockdown. O governo apenas aconselhava as pessoas a evitar saídas desnecessárias e, principalmente, evitar viagens para outras províncias. Assim, boa parte das janelas que eu fotografei foram em caminhadas locais por bairros tranquilos, justamente nessa época. Era como o oposto do View From my Window. Uma espécie de View From my Street, com a sensação de que a vida - o movimento - estava acontecendo realmente do lado de dentro das casas.
As janelas sempre foram fundamentais na arquitetura japonesa. A qualidade da luz que entra depois de passar pelo filtro do papel washi é algo ainda admirado por qualquer pessoa interessada na arquitetura daqui. Elas tiveram sua importância nos templos, casas de chá e residências aristocráticas, emoldurando paisagens e trazendo pra dentro do ambiente um pouquinho de cada estação. Na arquitetura contemporânea, muitas vezes elas eram retiradas da fachada em troca de um jardim interno, da casa que se abre pra dentro, quando localizada em bairros altamente adensados, como no caso da Azuma House de Tadao Ando, pra citar um exemplo conhecido. Outras vezes as paredes fazem a função de janela, sendo completamente transparentes, como na NA House de Sou Fujimoto, revelando o brilhantismo de quem as projetou ou, no mínimo, um olhar diferente pra um elemento comum e necessário em qualquer projeto residencial.
Mas não essas. Essas janelas são nada mais, nada menos do que o acúmulo de vivências e ciclos que começam e terminam na vida de qualquer pessoa. Elas nos mostram que nem tudo pode (e deve) ser meticulosamente planejado. Que as coisas mudam, às vezes de forma repentina e que a vida tem que seguir seu curso, mesmo que bagunçada. Talvez seja utópico pensar em uma casa imaculada e sem qualquer tipo de desordem e sempre que vejo isso em algum programa de TV vídeo no YouTube, soa superficial e pouco verdadeiro. Há um ditado, atribuído a várias pessoas que diz “os olhos são a janela da alma”. E essas janelas são, pra mim, um dos retratos mais honestos de uma casa que não se ocupa em tentar parecer perfeita, essas janelas são o retrato de uma casa com alma.



Cinco anos e centenas de fotos depois, eu continuo fascinado por esses pequenos fragmentos de cotidiano alheio. Ainda não sei ao certo onde pretendo chegar com esse “projeto fotográfico”, mas sei que ele está longe do fim. Da mesma forma, não quero ter todas as respostas agora. Talvez nem queira ter resposta alguma. Por hora, continuo com a câmera perto de mim e com o olhar atento, tentando lentamente decifrar aspectos dessa mística relação entre ser humano e moradia.