Quando Kisho Kurokawa projetou o Nakagin Capsule Tower, em 1972, algumas sementes importantes estavam sendo plantadas no mundo, cujos frutos estão sendo colhidos agora. Por exemplo: A primeira ligação de um telefone celular foi feita em 1973. O Walkman da Sony foi criado em 1972. O correio de voz, o disquete, o primeiro e-mail e a calculadora de bolso também surgiram nessa janela temporal - nessa Windows. Foi um período de grandes transformações sociais, rupturas e revisões de padrões estabelecidos, guerras, crises do petróleo e colônias conquistando “independência”. O estilo de vida alternativo e movimentos de contracultura, como o Punk com o “faça você mesmo”, o Hip-Hop, o Grafite, David Bowie, Bob Marley, Black Sabbath, The Clash, Pink Floyd, serviam como combustível que alimentava uma juventude sedenta por liberdade, por novos caminhos e novas maneiras de se caminhar. Foi um período de muitos avanços tecnológicos em diversas áreas e as pegadas do homem na Lua ainda estavam frescas. Todos esses pequenos inventos e conquistas aceleravam um movimento de busca constante por liberdade e também por identidade e corroboram de certa forma o fato da década de 1970 ser considerada a era do individualismo, definida por Tom Wolfe como a década do “eu”.

Em seus escritos sobre o Nakagin, Kurokawa parece ter concebido o edifício justamente como uma ode ao individualismo, especialmente em um país que preza tanto pelo coletivo e pela harmonia do grupo, como o Japão. Uma resposta nipônica à crescente tendência individualista ocidental. Ele falava também sobre uma iminente era/sociedade da informação e como isso alteraria as relações entre grandes e pequenas cidades, citando o exemplo de Kyoto, que apesar de não ter o tamanho e a força econômica de Tokyo, possui uma das maiores riquezas culturais acumuladas do mundo, podendo assim, capitalizar em cima desse ativo.
A extensa troca de informações passaria a ser um aspecto fundamental da sociedade, segundo Kurokawa, impulsionadas pela mobilidade das pessoas por diferente países e culturas, constantemente levando um pouco dos outros e deixando um pouco de si. Nesse contexto surge a cápsula, como uma facilitadora dessa relação entre a sociedade da informação e o indivíduo que Kurokawa passou a chamar de Homo movens; pessoas livres caminhando pelo mundo, carregando pouco consigo e cidadãos de todos os lugares. Basicamente o que chamamos hoje de nômades digitais, ainda que com algumas diferenças.
Nas palavras dele: “A Torre (Nakagin) também busca estabelecer um espaço para o indivíduo como uma crítica ao Japão que se modernizou sem passar por qualquer estabelecimento de um ‘eu’”. O sistema familiar tradicional entraria em declínio e a família passaria a ser formada por vários indivíduos habitando espaços distintos e a sociedade do futuro seria construída cápsula sobre cápsula. E esta seria portanto uma espécie de arquitetura ciborgue resultante da fusão entre Homo movens e moradia e essa arquitetura seria cada vez mais considerada como um mero equipamento numa sociedade tão dinâmica. Lembrando, isso era década de 1970 e ele já estava falando de nomadismo e preocupado com o fluxo avassalador de informações.
É difícil mensurar o quanto o mundo degringolou de lá pra cá, mas de alguma forma, Kurokawa estava certo sobre o futuro. Sob um olhar arquitetônico, o conceito de cápsula deu certo, apesar do fracasso do Nakagin que foi desmontado no primeiro semestre de 2022 como contei aqui. Podemos observar isso, não somente pela quantidade de hotéis cápsula que encontramos pelo Japão (o primeiro foi Capsule Inn Osaska, em 1979), mas também pela diminuição nas áreas dos apartamentos residenciais pelo mundo todo. Muitos hoje em dia entendem que não é mais economicamente viável comprar um imóvel. Em Tokyo, por exemplo, há um grande número de pessoas vivendo em share-houses onde os quartos são individuais e as áreas de cozinha e estar são compartilhadas. Aliás, eu mesmo já morei em um “alojamento” que mais parecia uma share-house no longínquo 2004.
Uma matéria do site InfoMoney de julho de 2023 afirma que a quantidade de “nômades digitais” era de 35 milhões no mundo todo em 2022, com a projeção de atingir 1 bilhão em 2035. Na prática, isso significa menos pessoas comprando casas, menos casamentos e filhos (mais fácil ser um nômade solitário do que carregar um rebanho de Homo movenzinhos) e uma sociedade realmente estabelecida na era da informação e, de certa forma, isso representa o começo do triunfo do Homo movens sobre o Homo-nem-tão-sapiens-assim.
O que torna esse estilo de vida possível hoje em dia é um ingrediente que ainda estava em fase embrionária na época do Nakagin: a Internet, que encurtou as distâncias do mundo moderno e, como costumam dizer, democratizou o acesso à informação. No entanto, um dos artigos da “Capsule Declaration” de Kurokawa, publicada em 1969, dizia que a cápsula seria uma espécie de escudo justamente contra essa sobrecarga de informação.
“Tal como um astronauta está protegido por um abrigo perfeito contra os ventos solares e os raios cósmicos, os indivíduos devem ser protegidos por cápsulas nas quais possam rejeitar informações de que não necessitam e nas quais sejam protegidos de informações que não desejam, permitindo assim que um indivíduo recupere sua subjetividade e independência.”
E é justamente nesse ponto que a cápsula falha. Ainda que ela possa ser vista como uma espécie de casulo, onde o indivíduo é capaz de encontrar a paz e nutrir seus ideais - “sua subjetividade e independência” - ela é ineficaz no combate e na neutralização das ações de outra “cápsula” menor, mais discreta, que sabe tudo sobre nós e que muitas vezes capitaliza em cima dos nossos defeitos: o smartphone, uma cápsula que nos foi enfiada goela abaixo, já que hoje é quase um item obrigatório na vida de qualquer pessoa que não esteja em retiro espiritual no meio do mato.
O fenômeno das redes sociais - que nos dá a impressão de sermos mais importantes do que realmente somos - é o principal vetor de transmissão das informações que consumimos (ou que nos consomem?), sendo que grande parte delas são absolutamente inúteis/desnecessárias e junto com essas informações são transmitidas também ansiedade, depressão, complexo de inferioridade, entre outros efeitos colaterais como dificuldade de concentração e sono ruim. Este que vos escreve (re)começou a fazê-lo tardiamente como forma de exercício com o objetivo de organizar melhor as ideias dentro da própria cabeça e colocá-las pra fora de forma minimamente coerente.
E espantosamente não tem sido fácil. Foram anos tentando “entender o conflito de sei lá onde em 10 slides” e escrevendo textos que cabem na legenda do Instagram (incluindo as hashtags). Não, não funciona assim. E hoje, mais do que nunca, a gente vive na tal “Era da Curadoria” sobre a qual Mario Sergio Cortella afirma que “o que importa é saber o que importa”. Quantas vezes nos pegamos entrando no YouTube para pesquisar algo do nosso interesse e acabamos presos em vídeos sobre ataques de ursos ou a explicação definitiva sobre o “Gato de Schrödinger”? Desnecessário dizer que a internet é uma ferramenta poderosa na disseminação de conhecimento, mas é fácil se perder em meio a tanta informação.
E olhem só, um texto que começou falando sobre um projeto metabolista de Kisho Kurokawa, está terminando com Mario Sergio Cortella. Meio confuso, mas faz parte. O processo de melhoria é longo e a evolução é lenta. Mas só pra encerrar, os frutos daquelas sementes plantadas na década de 1970 estão hoje no nosso bolso e podemos enxergar a facilidade de acesso às informações como o copo meio cheio (no caso, transbordando), ou meio vazio quando levamos em conta a qualidade do conteúdo que chega até nós. A boa notícia é que boa parte de tudo que funciona na internet é movida por algoritmos que, por si só, são incapazes de emitir qualquer juízo de valor sobre aquilo que é “subido” na grande rede. E cabe a todos nós tentar melhorar a nossa dieta digital, pra que o algoritmo entenda o que nos faz bem e ofereça mais, ainda que embutindo centenas de anúncios esdrúxulos no pacote.
Cápsulas, individualidade e informação. Esse tripé propagandeado por Kurokawa 50 anos atrás continua mais atual do que nunca, apesar das metamorfoses sofridas (smartphones, redes sociais e desinformação). Ainda estranho um pouco a visão de pessoas andando pelas ruas com a cara enfiada no celular, dentro da sua própria bolha, da sua própria cápsula. Quase como uma aura sintética. Eu vejo um futuro onde a troca de informações continuará a ser relevante; o mundo virtual e o real estarão cada vez mais embaralhados e nele cada um colocará sua “melhor versão”, avatares rebuscados de si mesmos zanzando pelo metaverso com letreiros luminosos destacando suas melhores características. Um invólucro contendo apenas o excepcional de cada um, prontos para “colabs” e “publis”, seja lá de quem for o interesse. Há cinquenta anos, Kurokawa previu o Homo movens. E o futuro dos próximos cinquenta será do Homo capsula-movens.
“A cápsula é uma arquitetura ciborgue. Homem, máquina e espaço constroem um novo corpo orgânico que transcende o confronto. Assim como um ser humano equipado com um órgão interno feito pelo homem se torna uma nova espécie que não é nem máquina nem humana, a cápsula transcende o homem e o equipamento. A partir de agora, a arquitetura assumirá cada vez mais o caráter de equipamento. Este novo dispositivo elaborado não é uma ‘instalação’, como uma ferramenta, mas é uma parte a ser integrada num padrão de vida e tem, em si, uma existência objetiva.”