Seguindo o mapa artístico da região de Setouchi, que engloba tanto as áreas costeiras, quanto as diversas ilhas do Mar de Seto, o destino da vez foi Teshima, um pequeno pedaço de terra um pouco mais a leste de Naoshima, que visitamos em maio como contei aqui. O histórico das duas ilhas é bem parecido: locais com natureza abundante, baixa densidade populacional, e que sofreram até meados da década de 1990 com a poluição causada por indústrias de mineração, quando então começaram a ser revitalizadas através da arte em uma iniciativa do Grupo Benesse, colocando Setouchi definitivamente no mapa turístico/artístico do Japão.
O roteiro foi parecido com a viagem de maio: carro até o Porto de Uno, na cidade de Tamano e de lá, balsa até Teshima, numa bonita viagem de aproximadamente uma hora pelas águas tranquilas do Mar de Seto. Comparada com Naoshima, Teshima tem um acervo artístico um pouco mais modesto. Boa parte da ilha é ocupada pela vegetação nativa, pelo Monte Dan’yama e pelos terraços de arroz, de forma que as construções basicamente são concentradas ao redor dos dois principais portos: Ieura e Karato. O segundo é o que nos interessa aqui, pois é perto dele que ficam os dois locais que visitamos em outubro, o Teshima Art Museum, projeto de Ryue Nishizawa que abriga exclusivamente a obra “Matrix”, de Rei Naito e “Les Archives du Cœur”, um projeto extremamente interessante do artista francês Christian Boltanski.



Assim que atracamos no porto de Karato, o que vimos foi um local modesto, com uma pequena construção em madeira onde são compradas as passagens e, do lado de fora, um ponto de ônibus. O Teshima Art Museum fica a aproximadamente 1km de distância do porto, só que ladeira acima, sendo que o pequeno trajeto de uma ou duas paradas pareceu bem mais sensato do que subir a pé, apesar da paisagem e do clima agradável, embora um pouco mais quente do que o normal para o mês de outubro.
De cara já gostei do jeito despreocupado dos funcionários locais. A senhora que vendia os bilhetes estava do lado de fora da cabine, sentada junto com os passageiros que aguardavam a próxima balsa, e o motorista do ônibus estava fumando um cigarro no jardim, esperando a hora de partir pra mais uma viagem ao redor da ilha. Cenas típicas do Japão rural só que aqui, bem mais adaptadas aos turistas que chegam de todos os cantos. O percurso até o museu foi tranquilo dentro de um microônibus com cerca de 10 pessoas e o desembarque se dá em um ponto da pequena estrada que tem uma vista privilegiada do Mar de Seto e passa a impressão de que o caminho termina dentro da água. As placas indicativas vão nos guiando até um ponto onde já podemos ver a obra de Ryue Nishizawa perfeitamente implantada na encosta do morro, como se já fizesse parte da paisagem há muito tempo.



Teshima Art Museum (2010), Ryue Nishizawa + Rei Naito
Quando coloquei esse museu na minha wishlist, foquei apenas no edifício em si, ignorando o tipo de instalação artística que ele abrigava, e acabei indo pra lá sem ter a menor ideia do que encontrar. E essa foi uma decisão acertada. O Teshima Art Museum é composto por três estruturas: The Art Space, Cafe and Shop e Ticket Center. O projeto geral é assinado por Ryue Nishizawa, no entanto o espaço de exibição é um trabalho conjunto do arquiteto e da artista japonesa Rei Naito, que brilhantemente concebeu a obra “Matrix”, permanentemente exposta no local, o que acabou sendo uma agradável surpresa.
O The Art Space é composto por uma única “casca” autoportante de concreto armado com 25cm de espessura e curvas livres que não fazem distinção entre paredes e teto. Possui uma entrada principal em forma de arco e duas aberturas elípticas por onde entram sol, vento, chuva, sons e insetos. E essa era uma premissa do projeto: integrar o museu à paisagem da ilha e à natureza do entorno. A estrutura em formato de gota caída é a moldura ideal para o maravilhoso trabalho de Rei Naito que utiliza a água como forma de expressão e harmoniza também com o relevo ondulado da encosta e com as curvas dos terraços de arroz logo ao lado.
Matrix
Os pequenos furos instalados no chão ondulado parecem banais. Deles, a água brota em diferentes quantidades e a impermeabilização impecável do piso faz com que essas pequenas gotas se comportem como se estivessem em uma panela antiaderente, criando formas variadas que vão correndo livremente, unindo-se a outras “poças” até, eventualmente, encontrar pequenos ralos espalhados pelo local, num movimento infinito e meio hipnótico, como obras de arte mutantes e efêmeras. O movimento constante de duas pequenas serpentinas brancas penduradas nas aberturas dão uma ideia do vento que corre livre pelo espaço e o som dos pássaros e insetos é amplificado dentro desse “recipiente que aceita a natureza como ela é”, nas palavras da artista.



O fluxo de água nascendo de pequenos buracos no piso e indo embora por outros de forma contínua passa, sobretudo, uma ideia de nascimento, morte e renascimento. E isso acaba sendo uma metáfora singela do que aconteceu na região nas últimas décadas, com uma paisagem degradada dando lugar a um local pulsante, onde a natureza não só é preservada, mas também vivenciada através da arte e da arquitetura.
Seguindo a lógica de Naoshima, fotografias internas não são permitidas, assim como os calçados que devem ficar do lado de fora, embaixo de um banco curvo e longo colocado bem do lado da entrada. E por mais que eu tenha imaginado dezenas de fotos possíveis da parte interna, no fim das contas é válida a iniciativa de proibir fotografias, pois a imersão naquele espaço e as sensações que surgem são impossíveis de serem transmitidas através de meros pixels (ou caracteres), e o fato de estar livre de distrações acaba trazendo uma paz estranha, que aguça todos os sentidos e nos deixa ao mesmo tempo relaxados e despertos.
Ficamos provavelmente cerca de uma hora lá dentro e achei pouco. Daria pra ficar muito mais tempo. Mas ainda tínhamos que andar pela parte externa, conhecer o café, comprar mais um ímã de geladeira pra coleção e partir, agora sim, caminhando até o próximo local.
Les Archives du Cœur (2010), Christian Boltanski.
“Uma ‘livraria’ em um local distante, onde pode-se ouvir as batidas dos corações de pessoas do mundo todo” foi a ideia inicial de Christian Boltanski, artista francês que vinha “coletando” os batimentos cardíacos de pessoas desde 2008. Boltanski, falacido em 2021, sempre foi um artista que abordou temas como vida e morte nas suas obras, através de pinturas, fotografias, vídeos e grandes instalações em galerias de arte e, como um ocidental, “Les Archives du Cœur” talvez tenha sido a mais oriental de suas obras, oportunamente instalada em definitivo aqui em Teshima. Uma modesta construção no limite leste da ilha, quase nas areias da praia de Ojigahama e bem perto do Santuário Hachiman, qua abriga um valioso arquivo invisível; pequenos sinais de algo que não conseguimos enxergar, mas temos certeza que existe.
Interessante que tanto a obra de Boltanski, quanto a de Rei Naito, tratam não somente de nascimento e morte, mas também da brevidade entre esses dois momentos e da fragilidade da nossa existência durante essa jornada.
Les Archives du Cœur possui três salas: “Heart Room”, uma sala escura com uma lâmpada e espelhos nas paredes onde são “tocadas” as batidas de coração em alto e bom som; “Recording Room”, onde podemos gravar os nossos batimentos cardíacos, que ficam registrados no acervo geral; e “Listening Room”, onde podemos ouvir batidas específicas, procurando por nome ou número.



Aqui vai uma confissão: não entramos na “Heart Room”, que basicamente é a instalação principal do local. Em contrapartida, gravamos nossos próprios batimentos cardíacos, processo que é feito em uma pequena sala com isolamento acústico que tem uma mesa com computador, microfone que você encosta no peito pra gravar e fone de ouvido pra monitorar a gravação, em torno de 40 segundos. Quando achar que ficou bom, clica em um botão de confirmação e está feito.
Assim que saímos da sala de gravação, os atendentes pedem pra aguardar e assinar o livro de presença enquanto eles terminam de gravar o arquivo em um CD personalizado com seu nome e número de registro. Tão logo o meu ficou pronto, fui diretamente pra sala de escuta, também pequena, com apenas 3 mesas e uma grande janela com vista para o mar de Seto e a paisagem ao fundo. Sentei lá, coloquei o fone de ouvido, digitei meu número de registro e ouvi minha gravação enquanto um pensamento me ocorria: por que os cemitérios não são assim? Por que ao invés de uma lápide, não podemos lembrar das pessoas que amamos em um local bonito, onde nos é oferecido um registro eterno da prova mais fundamental da existência de alguém nesse plano: o registro de um coração batendo?
Li alguns relatos de que essa pequena “biblioteca sonora” é muito querida entre os moradores locais. Apesar de eu não ser nem japonês, nem morador de Teshima, fico feliz por ter eternizado (enquanto durar) um pequeno rastro da minha passagem nesse mundo em um local tão especial. Eu poderia ter feito isso em casa, em qualquer momento da minha vida. Mas não seria a mesma coisa. É reconfortante, de certa forma, saber que mesmo depois que eu for embora, essas ondas energéticas continuarão por aqui, para quem quiser ouvir.
“People only come back to life in other people's memories” (Christian Boltanski)
E pra quem pretende visitar Teshima ou Naoshima, desde outubro/24, os ingressos são vendidos exclusivamente online aqui.