Domingo, 9:30 da manhã. Considerando o dia, pode-se dizer que é cedo, mas como domingo é o dia que antecede a rotina semanal, sinto uma pontada de culpa por pensar que deveria ter acordado mais cedo pra aproveitar melhor. Mas sigo. Preparar e beber café sempre foi algo sagrado pra mim e quis o destino que meu endereço atual fosse quase atrás de uma Starbucks, de forma que hoje prefiro ir até lá e pegar algo já pronto, simplesmente porque é mais rápido. E amanhã já é segunda. Pra minha surpresa, o local está lotado, e nem estamos no centro da cidade, ou perto de alguma estação de trem. Lá dentro dá pra ver todo tipo de personagem: pessoas lendo, pessoas escrevendo, pessoas conversando em grupo, mas a grande maioria é composta por estudantes. Essa é uma visão muito comum aqui no Japão, estudantes aos bandos lotam cafeterias e lanchonetes e lá ficam por horas, com notebooks, livros, fichários, estojos e cronômetro ligado, tudo isso pelo preço de um café (ou Frappuccino, que tem tudo dentro, menos café). Uma adolescente sentada no balcão, construiu seu próprio casulo intelectual; numa rápida olhada eu contei 14 livros em volta dela. Em outra mesa, um homem na casa dos 30 anos tem meio dúzia de cadernos de anotações abertos e escreve freneticamente em outro. Ele está sempre por lá e deve utilizar aquele espaço como um escritório. De vez em quando levanta, vai lá fora, fuma meio cigarro e volta ao seu ritual que, de novo, pelo preço de um café, sai mais barato do que alugar um ponto comercial ou pagar energia elétrica, água e gás da própria casa.

No final da década de 1980, o sociólogo americano Ray Oldenburg escreveu sobre a importância pra sociedade de locais neutros e informais com a função de reunir pessoas de uma determinada região ou comunidade, como igrejas, praças, parques, bibliotecas, livrarias e cafeterias, onde elas pudessem confraternizar, relaxar e discutir ideias de forma espontânea. A esses locais ele deu o nome de “terceiro lugar”; não é o primeiro (casa), nem o segundo (trabalho). É o terceiro. Ray cunhou esse termo em seu livro “The Great Good Place”, de 1989, que trata desses lugares onde o convívio interpessoal pode ocorrer sem as máscaras por vezes necessárias numa sociedade organizada. Para ele, o terceiro lugar é essencial para a vitalidade social de uma comunidade e, em última instância, para o exercício da democracia em si. Ele destaca também a importância de “um lugar na esquina” para onde as pessoas possam ir sem ter a necessidade de entrar em um automóvel e pontua que a ausência desses lugares torna a vida mais cara, já que as instalações e os meios para esse tipo de lazer teriam que ser adaptados à propriedade e ao consumo privados. O terceiro lugar era, acima de tudo, um lugar de contato. De conversar com vizinhos, de confraternizar, de fazer negócios, de compartilhar notícias, etc. Era um lugar especificamente criado para a interação entre as pessoas.

No Japão, o uso do terceiro lugar extrapola o conceito elaborado por Ray. Pressões sociais, longas horas de trabalho, moradias pequenas e a ultra valorização do aspecto coletivo são alguns dos motivos que levam pessoas a buscarem o terceiro lugar não como um local de reunião, mas sim como um refúgio público para encontrar um tempo para elas mesmas. O livro “Coffee Life in Japan” (2012), escrito por Merry White, trata da jornada do café desde sua chegada ao Japão e também das funções sociais que as cafeterias começaram a desempenhar no cotidiano das pessoas. Dentre elas, ela cita o termo “anabateki”, que pode ser mais ou menos traduzido como “lugar em forma de buraco” ou um não-lugar. Diferente do terceiro lugar de Ray, anabateki seria um lugar onde as pessoas vão sozinhas e não encontram ninguém do próprio círculo social. Não estão lá para fazer amizades ou conhecer gente nova, mas sim estão em busca de um local onde podem apenas ser anônimas em paz. Ela descreve esse lugar como sendo “um bom lugar para ter privacidade em público, quando a privacidade em si pode ser socialmente problemática”. No Japão, uma criança que anda sempre sozinha na escola, por exemplo, pode começar a ser mal vista pelos professores. Uma pessoa adulta frequentemente vista sozinha também pode receber adjetivos negativos, no entanto, dentro dos cafés, nada disso importa. O café, portanto, é uma camada importante nesse conjunto de lugares, que formam o ambiente construído de uma vida em sociedade. É um pit-stop necessário entre a casa e o trabalho, a escola ou universidade. É onde as pessoas passam algum tempo recarregando as energias antes de pegar um trem ou ônibus para qualquer lugar que seja e, ao mesmo tempo, é aquele momento onde a correria cotidiana dá uma pausa e as pessoas conseguem um tempo livre inclusive delas mesmas.
De alguma forma, essa relação entre o público e o privado tende a ser mais explorada no Japão do que em outros lugares. Parece haver, na sociedade japonesa, uma necessidade constante de se encontrar um equilíbrio entre as coisas; um mezanino, um lugar neutro onde as pessoas possam descansar e rejeitar as pressões que vem dos dois lados: o privado/familiar e o público/profissional. Muitas vezes a resposta pra isso são exatamente esses lugares informais - o terceiro lugar -, mas nem sempre. O uso do automóvel, por exemplo, parece ser mais complexo do que simplesmente levar alguém do ponto A para o ponto B. É bastante comum passar por alguma loja de conveniência depois das sete da noite e encontrar o estacionamento cheio, com as pessoas dentro do carro ligado e olhando pro celular (uma cena meio esquisita, diga-se de passagem); alguns compram algo pra comer no carro mesmo, outras apenas param no estacionamento (não é permitido estacionar nas ruas) apenas pra ficarem ali, sozinhas, por necessidade ou por vontade própria. É comum também ver alguns carros abarrotados de objetos, como se alguém o usasse não apenas como um veículo, mas como uma extensão da própria casa. Se é que tem casa. Certa vez, perguntei a um japonês o que ele gostava de fazer nas horas vagas e ele disse que gostava de dirigir sem rumo. Uma espécie de “anabateki-móvel”, por mais triste que possa soar. O declínio no número de casamentos e a conhecida baixa taxa de natalidade do povo japonês pode ser um indicativo de que essa necessidade de estar só é cada vez mais comum.
Na arquitetura, esse balanço entre o público e o privado; entre o dentro o o fora também já foi e continua sendo vastamente discutido. Um dos elementos mais importantes na arquitetura tradicional japonesa, por exemplo, recebe o nome de “engawa”, uma espécie de varanda que serve como transição entre o espaço interno e o externo. Já escrevi aqui sobre a Moriyama House, de Ryue Nishizawa, onde o programa é desmantelado em vários blocos e propõe a utilização dos vazios entre eles. Outro arquiteto que sempre traz essa problemática para as suas propostas é Sou Fujimoto. Em um de seus primeiros projetos experimentais, logo que começou a morar em Tokyo (vindo de Hokkaido), ele imaginou uma residência completamente espalhada pela cidade. Um cômodo para estudar em um local, banheiro e dormitório algumas quadras adiante e por aí vai, utilizando também elementos que já faziam parte da cidade; clubes, lojas e comércios em geral, como parte de um todo. Essa proposta, segunde ele, partiu da sua própria experiência morando na cidade e da maneira que ele vivia naquele período. Embora um tanto radical, de certa forma, isso não é tão distante assim da vida em uma cidade como Tokyo, com as moradias compartilhadas, hotéis-cápsulas, internet cafés e banheiros públicos. Outros de seus projetos mais conhecidos como a House NA e o projeto de 2013 para a Serpentine Pavillion tentam “borrar essas linhas” entre o dentro e o fora. Os dois projetos utilizam uma espécie de trama metálica fina, que cria espaços meio aleatórios, em vários níveis, nos quais o usuário pode, de repente, encontrar um pequeno nicho onde ele consegue ter então um momento de “privacidade” já que muitos desses pequenos espaços não comportam mais que duas pessoas e, a partir daí, surgem várias camadas (layers) dentro do projeto: um chão que vira mesa, ou cadeira, ou cama. Essa relação entre as pessoas e o chão é muito forte no Japão e, segundo Fujimoto, isso é mais comum em sociedades que têm como hábito tirar os sapatos dentro de casa. Por mais estapafúrdia que seja, várias vezes eu me pego fazendo a comparação entre japoneses e gatos. Principalmente em projetos residenciais pequenos, verticalizados, cheio de pequenos nichos, níveis e reentrâncias conectados por escada “marinheiro” onde o morador é forçado a explorar o local como um felino, apenas procurando uma “caixa de sapato” confortável pra ficar em paz.

No fim das contas, acredito que o ambiente construído de qualquer local diz muito sobre o que se passa na cabeça de quem os construiu. O dilema entre o público e o privado é denso, não só no aspecto físico, mas também no psicológico. Os termos “honne” e “tatemae”, por exemplo, são usados para descrever respectivamente: aquilo que alguém realmente pensa e sente; e aquilo que é externado no âmbito social, como em um local de trabalho. São coisas bem distintas. Ser capaz de esconder os sentimentos muitas vezes é visto como virtude numa sociedade onde a parte ritualística/cerimonial do convívio em grupo é extremamente importante e, por vezes, penoso. Tudo em nome da “harmonia”. O uso de máscaras já era comum por aqui bem antes de qualquer pandemia e, em muitas vezes, dava pra perceber claramente que não havia um motivo de saúde, mas sim, que aquilo era uma espécie de escudo, uma barreira abrupta delimitando o espaço entre a pessoa e o seu entorno. O sucesso, portanto, tanto de grandes redes como a Starbucks, quanto de algum anabateki escondido no subsolo de alguma rua ou debaixo de uma linha de trem, que oferecem um lugar confortável para sentar, energia elétrica, banheiro e (relativo) baixo custo é mais do que compreensível. Mais importante ainda: esses locais oferecem refúgio. É verdade que também são usados como terceiro lugar “padrão” descrito por Ray, com reunião de amigos, primeiros encontros de futuros casais, salas de estudo e até entrevistas de emprego. Mas no geral, a oferta de uma dose diária de solitude é talvez a razão principal para a prosperidade desses locais.
Independente do motivo, a cafeteria continua cheia. Sair de casa no fim de semana, com uma roupa mais ou menos e um livro na mão apenas para sentar lá e ler bebendo um café quente tem sido cada vez mais comum na nossa rotina por aqui. O barulho das conversas aleatórias, dos copos e canecas, e da máquina de café espresso funciona quase como uma playlist de frequência binaural que estimula a nossa criatividade e, ao mesmo tempo nos acalma e desacelera.

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