Existe no Japão uma rede de lojas com preços populares muito conhecida. Geralmente são lojas grandes e dá pra encontrar de tudo lá dentro: desde panelas e alimentos até pequenos móveis e fantasias eróticas. E geralmente fica uma coisa perto da outra, sem qualquer conexão. Não há nenhum tipo de identidade visual marcante, exceto por um pinguim gigante do lado de fora. Os corredores são apertados e é tudo meio bagunçado, mas não só isso, em quase toda seção existe um pequeno monitor exibindo um comercial em vídeo (um vídeo-jingle) com alguma música cretina de 20 segundos de duração e que fica tocando no “repeat”. Lá dentro, você vê e ouve tudo e, ao mesmo tempo, nada. As redes de Pachinko (casas de jogos de azar) também são um bom exemplo; a única vez que entrei em um, não consegui ficar mais de 2 minutos, tal era o excesso de barulho e a poluição visual. Aliás, a arquitetura desses locais merece um texto à parte. Além disso, o Japão também é palco de programas de TV de qualidade duvidosa e comerciais que, de tão bisonhos, fica até difícil acreditar que foram feitos de forma profissional (não clique aqui, por exemplo).
Ao mesmo tempo, o Japão é um país que possui intrincados códigos de conduta, onde situações banais como entregar um cartão de visitas para alguém exigem uma certa dose de etiqueta. É o país dos santuários xintoístas e dos templos budistas, da comunicação não verbal. O país onde o silêncio e a pausa são extremamente valorizados, onde obras são extremamente bem realizadas e as coisas funcionam com precisão de segundos. Ou milímetros. A primeira impressão que tive dos japoneses quando estive aqui pela primeira vez (há quase vinte anos) foi a de que não existe um meio termo; as pessoas ou são muito normais ou muito doidas. E, de certa forma, ainda enxergo isso como verdade. Quando as pressões sociais são grandes, o extravasamento também é. Muitas das vezes esse extravasamento leva à arte, outras ao suicídio, pois como diria Nietzsche: “temos a arte pra não morrer da verdade”.

Por mais clichê que seja dizer que o Japão é o país das dualidades, “do encontro do moderno com o novo”, acho que a maioria das pessoas que escreve tem apenas duas coisas em mente: Tokyo e Kyoto. Se conversarmos com dois turistas diferentes voltando do Japão, sendo que um deles passou o tempo todo em Kyoto ou Nara e o outro em Tokyo ou Osaka, acredito que a percepção deles em relação ao país seja um tanto diferente. O problema é que essa questão das dualidades é muito mais profunda do que jardins e arranha-céus com néon, do que tradição e modernidade. E um dos aspectos dessa discussão começa com a simples pergunta: o que é tradicionalmente japonês? Talvez não exista uma resposta confiável e absoluta. No entanto, para tentar entender um pouco mais essa problemática, precisamos ir mais longe do que nossa percepção de turista consegue enxergar. Na verdade, precisamos ir longe até o ponto onde não existia turismo aqui e o Japão era uma ilha encerrada em si mesma. Onde nem mesmo o questionamento do que era japonês se fazia necessário.
A história antiga do Japão é dividida em três períodos: Jomon, Yayoi e Kofun. O período Jomon é considerado o período que abrigou a primeira cultura a habitar o arquipélago japonês e que tem como característica principal os artefatos de barro cru texturizados com corda (Jomon significa marca de corda). Acredita-se que os Jomons chegaram ao Japão logo após a última era do gelo, entre 30.000 e 15.000 anos atrás, quando ainda havia uma ligação “seca” entre a ilha e o continente. O fim do Jomon e o começo do Yayoi se misturam por volta de 300a.C, com o começo de algumas ondas migratórias vindas do leste da Ásia, principalmente pela região onde hoje é a Coréia e chegando até a ilha de Kyushu. Essa transição ficou marcada pelo surgimento de cerâmicas mais refinadas (barro cozido), o uso de metais como bronze e ferro para confecção de sinos e espadas, pela domesticação de animais e, principalmente, pela agricultura, já que o cultivo de arroz em terraços começou neste período e a disputa por terras ditou o ritmo do desenvolvimento humano no Japão a partir de então.
Ainda mantendo-se como uma população homogênea e autossuficiente, era de se esperar um processo de colonização por parte das grandes potências europeias entre os séculos XVI e XVIII, o que não ocorreu e, embora tenha havido o intercâmbio de europeus com o Japão nesse período, este não terminou da melhor forma, já que missionários portugueses passaram a ser vistos como ameaça e a maior parte deles acabou expulsa do país. Muitos japoneses convertidos ao cristianismo nesse período também foram perseguidos/executados. De forma geral, o contato com europeus até 1853 foi relativamente “controlado” pelo governo japonês. No entanto, o que houve logo após a chegada definitiva do Comandante Matthew Perry, em 1854, foi um longo processo de adaptação de tecnologias, políticas e militarismo ocidentais (depois de uma ameaça inicial básica), dando fim a um período de mais de 200 anos de isolamento. Após a assinatura do acordo de comércio com os americanos, Inglaterra, Rússia e Holanda também conseguiram acordos similares e o Japão estava definitivamente aberto para o Ocidente. A partir de então, o Japão viveu anos turbulentos, com protestos contra estrangeiros e a intensificação de conflitos entre domínios maiores e o poder central, culminando no fim do xogunato em 1868 e o início do período Meiji.
Durante o século XIX, o intercâmbio de estrangeiros vindo para o Japão e de japoneses indo para o ocidente cresceu e deu início a um processo de identificação de uma cultura distinta e distante. Objetos tipicamente japoneses como leques, arte ukiyo-e e capacetes samurais eram levados para o ocidente como raridades, enquanto no arquipélago, construções tipicamente ocidentais começavam a surgir, principalmente nos arredores dos portos abertos para o exterior, como Kobe, Yokohama e Hakodate. Eram edifícios "pseudo-ocidentais” (Giyōfū Style) que mantinham uma estética surgida tanto pela observação in loco da arquitetura realizada na Europa quanto por fotografias trazidas de lá, porém utilizando técnicas de carpintaria tradicionais do Japão.
Algumas décadas adiante, outro episódio importante para aguçar esse olhar para o Japonismo foi a visita (um tanto forçada) do arquiteto alemão Bruno Taut, que, saindo de uma Alemanha onde foi perseguido pelo regime nazista, desembarcou no Japão em 1933 e foi recebido por um grupo de arquitetos japoneses que o levaram ao Katsura Imperial Villa, construído no século XVII e até então pouco conhecido até pelos próprios locais. Esse grupo, auto entitulado “Japan International Architecture Association” e liderado por Isaburo Ueno, já buscava um retrato um pouco mais convincente do que era, de fato, arquitetura japonesa e criticava uma espécie de ecletismo nacionalista que vinha ganhando força através do Teikan (Imperial Crown) Style - que basicamente era um edifício neoclássico com um telhado japonês - como na proposta vencedora para o Museu Imperial de Tokyo, em 1937. O Santuário de Ise também entrou em pauta. Coube a Taut, então, medir o Katsura com uma régua modernista ocidental, afirmando, por exemplo, que sua arquitetura era funcionalista. E coube aos japoneses utilizar a voz de um arquiteto europeu para chancelar suas ideias e tentar mesclar o que eles entendiam como “arquitetura tradicional japonesa” com o emergente International Style.

O mesmo Taut passou a adotar termos como honmono (autêntico/imperial) e ikamono (kitsch/com referências ao período Tokugawa) na arquitetura como forma de diferenciar tal e tal obra e fazer valer sua “visão ocidental” no Japão (uma visão de fora), contemplando a dualidade que havia no passado entre o poder imperial e o poder dos xoguns. Durante a Segunda Guerra e o subsequente período de ocupação americana, outros teóricos abordaram essa problemática como Masao Maruyama no seu livro: “Studies in the Intellectual History of Tokugawa Japan” (1952). Nele, o autor apresenta os conceitos de Sakui e Jinen, onde o primeiro representa uma espécie de construtivismo oriundo de uma maneira ocidental de se pensar e o segundo, uma maneira japonesa de encara a vida; respeitando e seguindo o curso natural das coisas. Em 1944, Ryuichi Hamaguchi usou termos como “construtivista e objetivo” ao referir-se à arquitetura ocidental e “espacial e performático” ao falar da japonesa. Isso tudo é muito bem esmiuçado no livro “Japan-ness in Architecture”, de Arata Isozaki, talvez um dos arquitetos que mais tentou destrinchar as origens e características desse Japonismo. Outra visão interessante sobre ocidente e oriente vem de Ryue Nishizawa. Ele entende que existem diferenças entre a arquitetura do Japão (ilha) e a arquitetura da Europa (continente). Para ele, a arquitetura do continente é mais objetiva, como “substantivos” empilhados uns sobre os outros, enquanto no Japão e em outros países do leste asiático que têm uma “cultura oceânica”, a arquitetura é mais como “verbo”, mais elusiva.



Não é de hoje, Jomon e Yayoi também têm sido usados como adjetivos para atribuir valor a coisas distintas e talvez isso tenha ficado mais evidente na arte e no design. De forma geral, Yayoi refere-se a tudo que seja mais refinado, polido, elitista e aristocrático e Jomon, aquilo que é mais rústico, visceral, popular e até mesmo vulgar. Na arquitetura, uma batalha marcante entre esses dois “times” foi travada durante a Expo ’70 em Osaka, quando a cobertura principal do evento, uma enorme estrutura metálica/modular/linear projetada por Kenzo Tange e concebida como uma espécie de membrana “invisível” foi “brutalmente perfurada” pela bizarra (porém, carismática) Torre do Sol, do artista Taro Okamoto. Tange e Okamoto eram a personificação de Yayoi e Jomon, respectivamente e acabaram criando um dinamismo interessante nesse embate que era a imagem do Japão no momento: a tradição bruta e a modernidade tecnológica. Quem visita o parque da Expo hoje acaba testemunhando o triunfo Jomon, já que a Torre do Sol reina absoluta e não mais disputa espaço com a cobertura gigantesca que abrigava pequenos pavilhões e robôs que eram, então, símbolo da tecnologia, da modernidade e imagem do futuro.

O futuro daquela época é o presente de hoje. E o Japão hoje é uma colagem rudimentar feita desses dois universos. Vendo de longe, Ginza (bairro das grandes marcas de moda) pode parecer Nova York, Paris ou Milão. Starbucks, McDonald’s, KFC e tantas outras redes de fast-food estão por todo lugar. Okinawa que abriga povoados com a maior quantidade de centenários/habitantes também tem hoje a maior quantidade de obesos/habitantes de todo o Japão. A homogeneidade da população facilita a transmissão das culturas e tradições milenares que ainda resistem, mas apesar de homogêneo, as diferenças regionais no Japão são marcantes e muito bem exploradas pelos locais. Os arredores das estações de trem e metrô são salpicados de lojas de artesanato e culinária regionais, ao lado de marcas globais. As visitas aos santuários xintoístas e templos budistas, que nem sempre estão relacionadas à religião, são apenas mais um costume comum, com pequenos eventos acontecendo durante o ano todo como forma de socialização. O senso de pertencimento a um grupo/comunidade e a valorização do aspecto coletivo contrasta com a cultura individualista ocidental. As moradias “modernas”, escolhidas em catálogos e que seguem o esquema “nLDK” (número de quartos + living + dining + kitchen), em nada se parecem com as casas de madeira, com portas deslizantes de papel (shoji screen), tão bem retratadas na obra de Junichirō Tanizaki: “In Praise of Shadows”, mas ainda sim contém um cômodo “tradicional” com tatami no chão e uma mesa baixa no centro. Quiçá uma alcova (tokonoma) com um pergaminho caligráfico na parede e um arranjo floral.
Diferente do que ocorreu no século XIX, a onda ocidental que chegou durante a ocupação pelos EUA não foi cuidadosamente selecionada pelos japoneses e qualquer coisa que não condizia com a visão americana de democracia era censurada. O fim cinematográfico do escritor Yukio Mishima, que cometeu Seppuku (suicídio cortando o próprio abdômen, seguido da decapitação por um escolhido) em público como forma de protesto pelo fim do Japão “tradicional” dá uma ideia do tamanho da polaridade que ficou após a saída dos americanos. E essa polaridade parece persistir até hoje, embora de forma mais sutil. A ilha globalizada segue seu curso. Nem ocidental, nem oriental; nem Jomon, nem Yayoi; nem tradicional, nem moderna. Ou tudo isso junto, na ânsia de viver o sonho nipo-americano. Como num MagLev, o trem que se move através da propulsão criada pelas forças atrativas e repulsivas, essa mesma polaridade parece contribuir para que o Japão continue seguindo em frente. A história japonesa foi marcada ora pela fusão, ora pela ruptura dessas partes conflitantes e acho que não está claro qual será o próximo capítulo, mas certamente haverá de ter silêncio e ruído.
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O Japão me parece o país de maiores dualidades absurdas... A beleza sublime e delicada e a escuridão perturbadora, valores incrivelmente puros e ao mesmo tempo aspectos grotescos. Eu ficava mesmo me perguntando como pode um lugar onde templos milenares coexistem com tecnologias de ponta, onde a disciplina e a honra são quase sagradas, mas a repressão e a solidão são igualmente intensas.
Se por um lado há uma cultura estética refinada (jardins zen, cerimônias do chá e haikais), por outro, há nichos culturais que exploram o bizarro e o perturbador... Se há um senso de comunidade e cortesia invejável, também existe uma frieza emocional e um isolamento profundo... É um país que valoriza a ordem e o trabalho, mas que também possui uma enorme cultura de escapismo.
Me perguntava se essa dualidade extrema é um reflexo da história japonesa. Afinal, é um país que viveu séculos de isolamento, sofreu uma ocidentalização forçada, passou por uma guerra devastadora e ressurgiu como uma potência econômica e tecnológica. Entendo que de repente isso pode ser o que criou um contraste tão grande. Mas tô só especulando, porque não sei absolutamente nada sobre o Japão, tirando o superficial e esteriotipado.
Todos os países têm essas contradições, mas eu acho que as do Japão me chamam mais a atenção, é realmente muito enigmático.
E eu AMEI como você fala sobre tudo isso, escrevendo, com suas fotos... E com conhecimento de verdade e informações valiosas (que me faltavam)!
Instrutivo! Gostei.